Cicatriz incurável

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– Não vai me responder, morceguinha?

– O que você quer?

– Por que nunca disse que cantava?

– Por que eu deveria?

– Não responda minhas perguntas com outras perguntas.

– Então não me pergunte nada!

O olhar de Cassian se curvou, com remorso.

– Não me afaste Lisdryam, já passamos dessa fase!

– Nunca tivemos fase alguma, preciso que saia!

– Então não ponha essa máscara, não finja que não sente.

– Mas eu não sinto!

Seus passos se arrastaram até que seu quadril estivesse na frente do meu rosto.

– Azriel estará ocupado amanhã, seu treino será comigo! - ele se impõe achando que eu obedeceria.

– Consigo treinar sozinha!

– Eu não duvido, mas amanhã será comigo e não vou falar outra vez!

– Treinar com Nestha não é o suficiente? Estou bem com Azriel.

– Não irei mais treiná-la, agora ela é responsabilidade do acampamento e das outras valkirias.

– Acha que pode me usar como tapa buraco?

– Não, até porque se eu pudesse teria te escolhido primeiro.

Pisquei uma, duas vezes, encarando aquele grande par de asas, pensando quais outras desculpas eu poderia usar.

– Não adianta fugir, eu te encontraria, seria assim todas as vezes! - como se soubesse o que eu planejava, ele diz como um aviso indo em direção a porta e saindo do quarto.

Um grito arrastado de puro estresse sai da minha garganta, ele conseguia me irritar, me tirar do sério e eu estava enlouquecendo.

Me joguei na cama feito uma criança birrenta e me forcei a adormecer.

Eu corria em direção um pântano escuro, cabeças rodavam pela água suja, minhas mãos mergulhadas em sangue e em minha frente os corpos boiavam, mortos pelas mãos de sua vítima, eram os monstros abusadores, se afogando no próprio sangue, eu tinha me vingado.

Quando mergulhei na água suja e lamacenta, a claridade do quarto incomodou meus olhos, já fazia dias que não sonhava, mas esse sonho não me incomodou, eu me senti aliviada porque eu sabia que eles estavam mortos.

Quando sai do banho, um ar gelado me fez tremer e percebi que estava nevando, a sensação de culpa me rodeou, mas aqui não tinha necessidade de me sentir assim, não podia deixar que um solstício estragasse minha vida, me levasse ao fundo do poço que tanto lutei para sair.

Desci para o café, eu estava submersa nas péssimas lembranças, queria sumir dessa corte e ir para onde não tivesse neve, onde não me levasse as lembranças de fome, culpa e dor.

Mal toquei na comida, beberiquei o chá algumas vezes, como um pássaro perdido.

Quando o café terminou, ou pensei que tinha terminado, me levantei e quando me direcionei as escadas, uma voz de longe falou comigo, mas eu estava desatenta.

Mãos quentes tocaram meu pulso, me virei lentamente tentando saber se era real ou mais um dos diversos delírios e más lembranças.

– O que você tem? Estou falando com você a manhã inteira e não me escutou nenhuma vez.

– Me desculpe, estou distraída, podemos deixar o treino para amanhã? - queria me enfiar nos lençóis e sair só quando isso acabasse.

– Lisdryam, que merda está acontecendo? Está me deixando nervoso!

– Não é nada, não me sinto bem com a neve - disse simples, torcendo para que ele não se aprofundasse nesse assunto.

– A neve te deixou nesse estado?

– É, foi o que eu disse, não é nada demais.

– Sei que tem algo atrás disso, mas não irei te pressionar, se troque, iremos sair!

– Irá me tirar da neve?

– Melhor que isso, estarei te esperando na sala de estar.

A Corte de Asas e SifõesOnde histórias criam vida. Descubra agora