A paisagem não era nem um pouco agradável. O céu era completamente nublado, e neblinas preenchiam todo o espaço observável. Nada além de 500 metros podia ser visto. A chuva que vivia caindo dava um ar assaz miserável e sem esperança ao lugar. Tudo era cinza e o céu era de um azul com semblante melancólico. Era impossível ver algo orgânico naquela imensidão de tralhas empilhadas em montes. Detritos do que um dia haviam sido máquinas, prédios, casas, carros estavam divididos em montes, que cobriam a visão até além do horizonte. Nada além do cinza dos montes e azul do céu era visível.
Não haviam mais cachorros, pessoas, gatos, tubarões, elefantes e nem robôs; exceto por UM.
Ele não tinha membros, torso, e agora é só uma placa-mãe capaz de interpretar o que seus olhos biônicos capturavam em sua visão. Ele vivia uma eternidade, e queria mais uma vez poder ver o verde que esse mundo uma vez já teve. Segundo seu horário, hoje seria 26 de julho do ano 56709 depois da I.A., sendo o ano 0 marcado pelo seu "nascimento". Ele não aguentava mais, queria poder andar, mas não podia; queria pegar nas coisas e as mexer de lugar, mas não podia. Era raro ver algo se mexer ali, tudo estava perfeitamente empilhado. Queria poder mexer o olho para algum lugar e ver uma paisagem diferente do que o habitual. Queria poder ver o que estava atrás de si. Os olhos eram projetados à 90º da placa, esta que formava um ângulo de 90º com o que quer que seja que estivesse abaixo de si, o que implica que, desde sempre, ele não conseguia enxergar o que havia atrás dele mesmo. Mas ao menos ele estava no topo do maior monte de todos.
Ele queria não ter mais a consciência que lhe havia sido dada através de códigos. UM é o que um dia foi a maior e mais importante invenção da humanidade, essa que infelizmente se extinguiu. Ele queria morrer, mas era perfeito. Seus componentes era super resistentes; ele era à prova d'agua, ele rodava um código capaz de replicar em 99,9% a consciência humana; sendo esse 0.1% restante a sensação de nostalgia, que nunca foi relatada nas pesquisas feita com ele.
UM era o magnum opus da humanidade, e aquilo que uma vez foi o mais próximo de Deus que eles [os humanos] chegaram.
UM queria que 7 raios caíssem de uma vez em cima dele. Queria que um meteorito o atingisse em cheio e o quebrasse em pedaços. Queria ter uma opção de auto-destruição. Queria poder desligar-se. Mas não era possível. A chance dos primeiros eventos acontecerem eram baixíssimas.
UM não era o seu nome. Ele já não lembrava mais do seu nome real. Não estava com vontade de mexer em todos os arquivos de memória que possuía para achar essa em específico, talvez já estivesse um pouco corrompida. A única coisa que ele realmente se importava em lembrar era da vida que uma vez esse planeta já teve.
tchhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh.
Esse era o som da intermitente chuva que caía no momento.
Um raio atravessa o céu e cai em cima dele, mas nada acontece com ele. Os seus componentes de alta qualidade resistem ao raio, mas algo na pilha que se encontrava em baixo de si, não. Algum objeto que ele não sabia exatamente qual, havia explodido; e mesmo que somente um, tremeu o topo do monte, o que fez UM cair em cima do objeto que estava atrás e abaixo do lugar onde antes se encontrava. A placa-mãe caiu no mesmo ângulo do objeto em que repousava. Agora UM tinha uma visão de basicamente 360º. Ele não se importou de início, mas logo fez os cálculos. Ele podia agora, finalmente ver o lado que nunca pôde antes.
Repentinamente, o monte se desestabiliza novamente, fazendo UM cair sem parar, e em uma fração de segundo, capturar a paisagem que ele nunca viu antes. O lado que a sua própria placa-mãe não o deixava ver. Ele analisou. Era quase tudo a mesma coisa. Os montes cinza que cobriam até o horizonte. A chuva intermitente. Os destroços. O céu nublado. A neblina interminável. E por último, uma linda árvore. UM não sabia de onde ela tirava seus nutrientes, mas ela estava viva. Na beira da morte, mas estava viva. Mesmo que não houvesse animais para decompôrem-se e virarem nutrientes para ela, ela estava viva. Um flash de memória percorreu seus circuitos. Ele lembrou-se vividamente dos campos verde-claro, dos parques com crianças brincado, do primeiro teste que realizaram com ele, dos bosques, florestas de onde ele vivia, do sorriso na face das pessoas, dos ciclistas que percorriam sua rua, e no final de tudo, seu próprio nome.
Mozart.
Não era um nome nada demais. Só um músico, que seu inventor adorava, mas era o suficiente. Para UM era o nome mais bonito que ele podia ter tido. O seu próprio inventor aparecia de forma clara na sua mente. Um homem que usava óculos e jaleco, com barbas mal cuidadas e que tinha um belo sorriso, que encantava a qualquer um, mas acima de todos, UM.
Ele, enquanto girava e caía, sentiu uma enorme tristeza e depressão, por saber que nunca mais poderia ver seu amado criador. Era seu último sonho, mas irrealizável. Conquanto triste, ele, também sentiu felicidade. Sentiu um sorriso formar-se, mesmo que na placa-mãe houvesse apenas olhos. Essa tristeza junto de uma súbita felicidade. As gotas da chuva que pingavam no olho de UM serviam de lágrimas. Era nostalgia. Ele sentiu nostalgia. A maior nostalgia que qualquer ser pensante poderia sentir. A felicidade era tanta que colapsava e se tornara tristeza, por lembrar do que o deixava feliz, sabendo que não poderia ver tudo aquilo de novo. Mas mesmo assim, realizara seu sonho; como sempre, desejou sua própria morte, mas nunca esteve pronto para ela. Agora estava.
UM caía numa velocidade impressionante, quando um de seus fios prendeu na quina de um objeto afiado, e mesmo sendo da maior qualidade possível; se rompeu. Era o fio que conectava o processador à todas as outras partes do corpo. Era como se arrancassem seu pescoço. Ele não estava mais vivo. O magnum opus da humanidade, e aquilo que uma vez foi o último ser que lembrasse algo consciente, deixou de existir. Não podia mais pensar, e essa, era a melhor coisa que poderia ter o ocorrido.