27 de abril de 2023.
Vogt está deitado em sua cama depois de acordar com um pulo de susto. Vogt tem lágrimas nos olhos. Ele não quer levantar de jeito nenhum, mas sabe que é obrigado pelo tempo a levantar da própria cama e fazer algo de produtivo. Ele tenta esquecer o que aconteceu no dia anterior e não quer repetí-lo. Não quer lembrar mais da sua infeliz realidade, mas infelizmente ele está inserido nela.
Resolve sair de casa. Talvez deve ser bom o suficiente para o entreter, mas ainda assim ele não está com vontade. Ele... Só quer sumir. Ele não quer morrer de forma grotesca, não quer que tivesse nascido morto, ele só queria que nunca tivesse existido. Essa é uma vontade que ele não consegue explicar. Nos dias anteriores ele veio sentindo a mesma coisa ruim. O desejo de só não ter que sentir nada. Nem a felicidade e nem a tristeza, nem a excitação e nem frustração. O desejo de não sentir e não pensar, logo, o desejo de não ser.
Mas isso não é possível. Ao levantar, usando somente uma bermuda e uma camisa frouxa, põe uma sandália e sai de seu apartamento. Ele desce o elevador do 8º andar até o 1º e desce o resto pela escada. Ele então vai até a portaria de seu prédio e deixa o mesmo. Ao sair do condomínio, cuja saída se encontra em uma ruela, ele começa a andar pela sua esquerda e chega a um cruzamento. Seu prédio está do lado de uma avenida muito movimentada. Quando os carros param por causa do semáforo, ele atravessa a rua calmamente. No momento em que chega ao outro lado da avenida, o semáforo dá o sinal verde e os carros voltam a andar.
Ele começa a andar por uma rua menor, que tem ruas ainda menores que a atravessam, mas que ainda assim passam bastante carros. Em uma dessas ruas que atravessam a qual Vogt está descendo, havia um carro na esquina. Vogt para diante do carro estacionado e espera por 5 segundos. Um carro passa na sua frente, bem rápido, e surpreendentemente não causa acidente algum. Ele continua descendo a rua, e nada de novo acontece. Ele já estava acostumado com aquela visão. A visão dessa rua. Ele então chega a um parque. Ele começa a andar pelas trilhas marcadas no chão do parque como ciclovias. Repentinamente ele dá um passo para a direita e uma bicicleta, bem silenciosa passa do seu lado. Ele não nem sequer uma expressão facial. Ele só continua andando pela trilha, até eventualmente sair do caminho e começar a andar por cima do gramado até uma parte com inúmeras flores. Olhando para o lado ele vê famílias, brincando com seus pequenos filhos que sorriem sem parar. Queria ele também conseguir, mas a maldição não o deixava. Fosse uma maldição, talvez não fosse uma, mas isso que o acompanhava não o deixava em paz.
Ele agacha preto das flores, que formam um anel de uns 3 metros de espessura, que abrigam algumas árvores em seu centro. Árvores enormes. Ele está de baixo da sombra dessas árvores. Depois de mexer um pouco nas pétalas dessa flor, ele resolve sair dali e ir para outra flor. O anel se dividia em quatro partes diferentes. Uma roxa, outra amarela, outra vermelha e outra azul. Cada parte formava um arco de 90º. Ele agacha de novo perto das flores amarelas e uma parte da árvore cai onde ele estava antes. Se tivesse batido nele com certeza não o mataria, mas que doíria, doíria sim.
Depois de olhar um pouco para as pétalas das flores, ele resolve continuar seu passeio em outra parte do parque. Passa por um lago, um lago reluzente. A água azulzinha. Uma coisa linda de se ver, mas para ele, é como se estivesse cinza. Os peixes nadam na água. Os peixes nadam. Eles não se preocupam. Eles não ficam se amargurando com o que puderam ou não fazer ontem. Não se preocupam com o amanhã. O ser humano, por ter consciência, é o único capaz de fazer isso. E ele odiava isso. Odiava ter que se preoucupar com o amanhã. Ele queria ser um peixe.
Passou na vendinha de pipoca justo na hora em que seu estômago roncou. O homem da vendinha deu uma pequena risada e entregou um saco de pipoca para Vogt enquanto o mesmo entregava o dinheiro ao senhor. O homem já estava meio velhinho, mas o sorriso que estava no seu rosto não saiu em momento algum. Ele parecia tão feliz. Vogt simplesmente acena com a cabeça, agradece e vai embora. Os músculos da face de Vogt não o deixam mais sorrir. Ele não é mais capaz de esboçar algum sorriso.
Ele vai comendo a pipoca enquanto analisa o parque inteiro. Depois de um tempo ele volta para casa e começa a usar o seu telefone. Ele vê o que está passando na mídia. Está dando a hora do almoço. Ele abre a barra de notificações e justo nessa hora seu amigo manda uma mensagem para ele:
"Eae manoComo vc ta?"
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"Ow, to ocupado, te chamo dps"
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"ta certo
Até"
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Essa foi a conversa deles.
Vogt prepara um macarrão instantâneo para si. Ele começa a comer. Ele já sentiu esse gosto inúmeras vezes. Está cansado desse gosto. Não é ruim. Mas está cansado. Ele deixa aquilo de lado. Não vai importar nada no final das contas. Depois de terminar o almoço ele resolve sair de casa de novo, mas ao pisar fora da própria casa, ele desiste e entra de novo para dentro dela, toma melatonina e vai dormir. Ele não se importa se vai desregular tudo. Ele não quer nem saber se pode dar merda. Nada importa no final de qualquer jeito.
Ele só acorda 7 horas da noite. O céu tá escuro. Ele recebe uma mensagem da mãe dando feliz aniversário. Ele olha para telha com olhos desolados. Ele novamente não achou a resposta, e nem queria mais achar, não havia mais sentido em nada.
Ele sai na rua e deixa a porta da casa aberta. Ele lentamente anda pelas ruas até chegar na avenida movimentada, onde ele começa a vagar pelos becos escuros e inóspitos. Era tão vazio que parecia não ter vida alguma ali. Era só possível ver as pesoas passando por frente dos becos nos finais deles.
Ele começa a subir uma escada que tem do lado de um prédio bem alto. Ele começa a subir ela. Vogt encontra uma porta corta fogo e entra nela. Por que diabos tem uma porta corta fogo na saída de um prédio? Ele não sabe dizer. Abrindo a porta, encontra um corredor escuro. No final do corredor, uma fraca luz revela uma escada ascendente. Ele começa a subir pelas escadas que parecem infinitas até o andar mais alto. Ele está cansado e ofegante, mas talvez dessa vez seja o fim de todos os seus problemas.
Ele tenta abrir essa porta e dá certo. Essa porta revela um terraço do prédio enorme com vista para toda a cidade. Essa vista é emocionante. É a única parte do dia que o agrada. Na beira do prédio, guardada por uma pequena cerca de metal, ele se encosta e observa a paisagem. Inúmeros pontos brilhosos na escuridão formando retas e curvas. Algumas vezes só pontos isolados. Algumas torres. Uma visão linda. A brisa fria lhe cumprimenta. Ele se sente só um pouco feliz. Essa é a única parte do dia que ele não sabe como vai ser. É a única parte do dia que ele não sabe dizer se o final é o final que ele procura ou não. Ele põe os dois pés do lado de fora da cerca de metal e fica na beira do prédio.
Qual seria o resultado? Ele não sabia dizer. Ele podia dizer todos os outros eventos do dia. Sabia quando o elevador ia dar problema. Sabia quando a árvore ia soltar um pedaço. Sabia quando um carro ia passar no seu ponto cego e que se ele tentasse passar correndo ele tropeçaria. Mas não sabia o que ia acontecer nessa ocasião em específico. Não sabia dizer certamente o futuro. Por isso era a melhor parte de todas. Era a parte que ele ia se sentir livre de novo. Livre para poder achar que o final pode ser bom para ele. Ele não podia sumir de repente igual fosse de sua vontade. Essa era seu último recurso.
Ele cai.
Ele fica a queda inteira de olhos abertos. Ele olha para baixo. O vento faz um barulho no seu ouvido. Ele não espera para conseguir ver o resultado. O chão chega cada vez mais perto. Mais perto.
Mais perto.
E ele bate.
Ele finalmente dá de encontro com o topo do outro prédio. Acerta a cabeça em cheio.
Ele acorda aos pulos em sua cama
Ah... Então era isso.
Sentiu uma pequena frustração, mas nada demais.
As lágrimas se formaram no seu olho. Ele estava todo contorcido na cama. Pega o celular, que estava do lado da sua cabeça e clica no botão de ligar a tela.
Vogt vê a hora e a data.
08:34 a.M.
27 de abril de 2023.
Nada mudou. Nada.
Não sabia quantas vezes esteve na estaca zero. Nessa estaca.
Isso sim, é uma apoptose sem fim.