Ryujin gostaria de poder levar o crédito por sua personalidade única e impressionante, mas não poderia fazer isso.
Tudo o que ela é, cada pequeno traço de personalidade e gostos pessoais foram herdados de seu pai.
Para ser honesta, nem ao menos se lembra do rosto do homem, já faz alguns bons anos que não tem contato com ele.
Mas ela se lembra de algumas coisas da infância.
Lembra do cheiro de tinta do verão que ajudou seu pai a pintar a parede dos fundos da casa.
Se lembra da cor da tinta.
Vermelho vivo.
A parede ainda é vermelha, embora tenha desbotado com o tempo.
Se lembra do cheiro de graxa quando o pai resolveu concertar uma camionete velha.
Também vermelha.
Se lembra das mãos calejadas tocando uma guitarra.
Vermelha.
Talvez fosse a cor favorita dele, só isso justificaria a quantidade de vermelho naquela casa quando o homem ainda a habitava.
Vermelho.
Sempre que pensava sobre o pai se lembrava das mãos dele, da camiseta branca.
Sempre manchadas de vermelho, um vermelho que ele tirava da mãe, vermelho vivo.
Tentava não pensar nisso especificamente.
Há muito tempo decidiu que não queria carregar o peso dessas memórias, então selecionava apenas as melhores e para sua sorte haviam muitas, seu pai não era um monstro afinal.
Ele era engraçado e sempre a carregava no colo quando reclamava de cansaço depois de caminhar por um tempo, as vezes a colocava nas costas e dizia ser um avião, o qual Ryujin adorava pilotar, usando os cabelos e orelhas do homem como controles de direção - isso, para ela, já provava que o homem era bondoso, não é todo mundo que tem paciência para carregar uma criança em suas costas enquanto ela grita e puxa seus cabelos - suas memórias favoritas eram de quando ele pegava o rádio da cozinha e levava até a garagem, colocava seus CD de bandas que Ryujin não conhecia e aumentava o volume no máximo, eles cantavam e pulavam e gritavam em um inglês carregado e sem sentido, em uma dessas lembranças há uma vaga sombra de sua mãe também cantando e sorrindo, sendo abraçada pelo pai.
Queria conseguir se lembrar do rosto dele.
A mãe queimou todas as fotos em que ele aparecia.
Ryujin se lembra que ele fumava Winston vermelho, se lembra que quando o cheiro forte do cigarro se misturava ao da bebida, era hora de ir para cama, sua mãe sempre a levava e contava histórias de ninar, mas Ryujin sempre acordava no meio da noite ouvindo gritos e barulhos altos e estranhos que a pequena mente infantil não conseguia distinguir com certeza, gostava de pensar que eles estavam ouvindo músicas no rádio, gritando por que estavam cantando juntos.
Teve uma noite em que os pais não gritaram, Ryujin ficou tão curiosa com o silêncio incomum que não resistiu em sair do seu quarto andando na ponta dos pequenos pezinhos, encontrou o pai no sofá, assistindo alguma coisa na TV a qual ela não prestou atenção, ele a chamou, o cheiro amargo mais forte do que nunca, mas Ryujin amava seu pai e não importava que ele fedesse de vez em quando, por isso ela foi até ele e se sentou ao seu lado, ele ascendeu um cigarro, Ryujin observou com curiosidade enquanto ele tragava, passou longos minutos olhando a fumaça sair dos lábios dele, até que ele segurou seu bracinho, e Ryujin não consegue se lembrar do que ele falou antes de apagar a bituca no seu antebraço.
Também não se lembra do que aconteceu depois, por isso evita pensar sobre esse acontecimento, a falta de respostas a deixam estressada.
Prefere pensar sobre uma das últimas memórias com o homem.
Ele estava sentado num banco velho na garagem - a camioneta já não estava mais lá - usava camiseta branca como sempre e tocava sua guitarra vermelha, quando notou Ryujin o espionando na entrada da garagem a chamou para perto, ela não sentiu cheiro de cigarro e nem de bebida e por isso se aproximou, o homem a colocou sentada em seu colo e colocou os pequenos dedinhos nas cordas da guitarra, explicou sobre as partes dela e até mesmo a ensinou uma pequena melodia, sua mão era pequena demais para tocar o enorme instrumento, mas com a ajuda do pai as notas saiam perfeitamente.
Seu pai era estranho, ele era um homem amoroso e cuidadoso até o momento em que não era.
Ryujin tentava não pensar nas memórias ruins mas era inevitável, todas as memórias boas que tinha com ele se contrapunham com memórias horríveis, muitas delas era incapaz de entender, não entendia quando criança e não entendia agora, pensava nos olhos da mãe inchados provavelmente pelo choro e pensava nos seus lábios sempre partidos e cortados, é sempre a primeira coisa que vem em sua mente quando a perguntam sobre infância, pensava na mãe e então nas mãos do pai.
Ela pensa na última vez em que o viu, dentro do carro da polícia, sendo levado para longe para sempre.
Seu pai quase nunca a machucava.
Quase.
Naquela noite em específico ela a machucou, talvez tenha sido o excesso de bebida, talvez o fato de que estava sem dinheiro para comprar mais cigarros, quem sabe o choro estridente de uma Ryujin doente, reclamando sem parar de dores de barriga.
Quem é que sabe?
Ryujin não sabe, ela até prefere não saber.
Do seu pai tenta manter apenas as memórias de guitarra e CD's de rock, quando está otimista se permite pensar em caminhonete e cercas vermelhas.
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The Rogue
FanficE quando eu encontrei a banda, eles perguntaram "você ainda tem um homem?"