PARTE I
A incessante adrenalina se mistura à calmaria do veloz nado que a jovem realizava. Quais ambas percorrendo seu corpo, que é simultaneamente tocado pela correnteza de forma contraditória, enquanto nada totalmente submersa nas águas; se esquecendo do mundo ao teu redor.
Seus lisos cabelos negros flutuavam e a água percorria cada centímetro de sua pele morena e a cauda chamativa que a acompanhava. Como aprendera desde pequena, a água é um elemento de constante mudança. Apesar disso, os seres que a habitavam pareciam propícios a se apegar de mais às raizes que se fincavam fortemente em histórias reais, baseadas em sofrimentos passados.
— Anahí! - a voz rigorosa, porém suave de Mawé ecoava em seus pensamentos longíquos - Anahí! Acorde! Rápido, antes que...
— Anahí! - outra voz ainda mais rigorosa grita alto de longe - Nada de cochilos durante a patrulha! Foco! Comece a levar isto a sério!
— Eu não estou cochilando Aiyra - Anahí responde, aumentando a velocidade, seguida por Mawé, que vem logo atrás dela em silêncio.
— É o que veremos - diz Aiyra em seu último grito para a jovem antes de diminuir a velocidade para fazer uma curva difícil no rio, em que o grupo de não mais de vinte sereias nadavam.
Anahí leva as mãos ao rosto esticando-o para os lados enquanto resmungava as palavras de Aiyra.
— Ela está certa - novamente Mawé chama sua atenção - É a concentração nessa rotina que faz com que fiquemos seguras, você sabe.
— É, essa rotina entediante e sem graça, Mawé - responde a irmã.
— Só porque você não vê graça em nosso modo de vida, não quer dizer que seja chato.
— Você ouviu o que acabou de falar? Sério, está parecendo uma versão mais jovem da Iúna!
— Pare, não estou não! - Anahí lhe lança um olhar que diz: "você sabe que estou certa", olhar que usava frequentemente direcionado-se ela - Idiota.
☼
Sendo uma filha de Iara, Anahí não possuía muita escolha do que faria naquele dia, ou em quaisquer dias depois deste. Assim como todas as suas irmãs, antes e depois dela; Anahí foi ensinada desde pequena sobre as lições de Mãe D'água (Iara), e sobre como toda a cultura e tradições de seu povo e família estavam diretamente ligadas à honra-lá.
Iara foi resistente e resiliente durante toda sua jornada enquanto viva. Ela sempre fora habilidosa e ótima guerreira, por isso, gerava com frequência a inveja alheia em sua aldeia. Um dia, seus irmãos que também a invejavam intensamente, decidiram matá-la na calada da noite, mas Iara foi mais forte do que eles, e matou a todos os seus irmãos antes que conseguissem tirar sua vida.
Com medo da reação de seu pai, o pajé, ao ocorrido, ela sozinha fugiu logo em seguida. Pouco tempo depois, ela fora encontrada pelo pai e lançada no encontro de dois rios, que mareavam juntos, porém nunca se misturaram. Então, a jovem tupi foi salva de um afogamento terrível pelos seres dos rios, adquirindo a forma como até agora suas descendentes são, metade mulheres e metade peixes.
Como seu último desejo antes da morte, Iara pediu aos deuses que alguém se recordasse dela como realmente era, já que histórias e calúnias sobre o estilo de vida da mesma não paravam de surgir. Atendendo à sereia, eles lhe deixaram nas águas dos rios por onde ela passara durante a vida sete descendentes. Juntas, elas começaram uma rica e autônoma cultura de gerações e gerações, que se estende ao longo dos séculos.
Desde o início, as filhas de Iara possuem uma líder que as mantém unidas e protegidas, sua principal função era garantir a segurança, harmonia e organização de todas as suas irmãs. As mais jovens não levavam muito trabalho, ajudavam com o que podiam, mas principalmente eram conhecedoras do sentido de liberdade de espírito e família.
A partir de determinada idade elas são ensinadas (geralmente pela líder) na prática, a como patrulhar e caçar. E assim faziam até não poderem mais, e passarem a descansar cuidando das mais jovens do grupo.☼
O Sol estava se pondo, essa era a parte do dia favorita de Anahí. A água se encontrava em tons de laranja e rosa que refletiam em tudo a sua volta.
Dezenas de descendentes de Iara (talvez todas), reunidas em um único local, perto da décima primeira cachoeira ao Leste. Casa. Quando Anahí, Mawé e o restante das mais jovens chegaram, todas as outras voltaram os olhares à elas seguidos de gritos empolgados. Mesmo sem entender, as recém chegadas se juntaram a elas como de costume, aguardando pelo discurso de Aiyra, a líder, antes do dia definitivamente chegar ao fim.
— Filhas de Iara! - Aiyra diz se direcionando à frente de todas e quebrando o recente silêncio - Hoje a Senhora das Águas está a nos observar, durante a integração de nossas mais jovens já chegaram na idade de ajudar nosso povo, que continua florescendo como a floresta que nos protege a tanto tempo. Amanhã, as crianças que hoje rondaram o rio junto a mim serão designadas uma para um próprio ponto, aumentando o perímetro da patrulha diária.
Naquele momento uma irmã chegou de longe com uma flecha em suas mãos, o que geralmente significava a captura de um ou mais homens. Aiyra fortemente passou os dedos pela raiz de seus curtos cabelos negros que se ondulavam na água, algo que costumava fazer apenas quando se estressava.
— Que Iara guie a todas nós! - Ela diz e logo em seguida nada em direção à sereia que chegara atrasada.
— Ela não é incrível?- diz Mawé, que permanecera ao lado de Anahí.
— Quem? A Aiyra? - respondeu a irmã bocejando.
— Não Anahí! A Amanara - ela respondeu empolgada, apontando para a sereia que trouxera a flecha, agora com quem Aiyra conversava.
— O que ela tem demais?
— Ah, ela é só a mais bem sucedida em caça e proteção de todas nós!
— Mas apenas na geração que lidera atualmente. Além disso, Aiyra é a protetora.
— Sim, mas pelo fato de ela ser protetora e líder não conta. E ficar ali conversando de igual para igual com ela ainda depois de ter chegado atrasada só a fez parecer mais legal!
— Não sei não Mawé. Ela passa uma energia... estranha. Já se perguntou, sei lá, se ela já fez alguma coisa da qual se arrependeu para manter essa reputação? Quantos terrestre ela já deve ter...- "matado", pensou ela. Anahí não consegui terminar a frase, e também não queria pensar sobre o assunto.
— Aí Anahí, para de ser pessimista. Amanara passa essa energia porque é forte! Quando crescer quero ser igual a ela.- a amiga respira fundo, exausta por ter nadado o dia inteiro - Começando amanhã, na nossa primeira patrulha! - disse ela exalando ansiedade - Agora vamos Anahí, temos que dormir- Mawé disse a puxando pelo pulso - Amanhã vai mudar nossas vidas.
— Como você é dramática! Minha vida está ótima, não preciso que nada mude.
— Mas por mais que queira, isso você não pode evitar.
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ENTRE O CÉU E ÁGUAS ⚢
Historical FictionEm meados de 1822, Anahí, uma jovem sereia indígena amazônica, preocupava-se internamente pois logo chegara o momento em que devera atrair sua primeira vítima às profundas águas do rio. Entretanto, suas irmãs e seu povo são surpreendidas com o a des...