A princesa do baile - parte II

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— Eu entendo que o aborto legal em caso de estupro não é só uma questão de saúde pública; ele é, também, um direito da mulher que sofreu uma violência extremamente repugnante, e essa mulher não tem a obrigação de arcar com as consequências dessa violência. Isso sem falar nos casos em que a gravidez oferece risco de vida pra gestante — Simone deu um par de cautelosos passos na direção de Soraya, que, por sua vez, estava um passo à frente de seu grupo. Era uma turma pequena, de uma atividade extracurricular realizada semanalmente à tarde, no contraturno das aulas. Todos já haviam contribuído com seus argumentos para a discussão. As duas sul-mato-grossenses fechariam o debate com chave de ouro. Era assim quase sempre. — Mas você não acha que, se o procedimento estivesse ao alcance de todas as mulheres, de forma legal e gratuita pelo SUS, certos jovens inconsequentes seriam capazes de encarar essa possibilidade como só mais uma "pílula do dia seguinte"? Você não acha que esses jovens banalizariam ainda mais os métodos contraceptivos, os riscos de contraírem DSTs e o sexo como um todo, já tão banalizado nos dias de hoje?

Soraya respirou fundo e apertou em seu braço esquerdo o caderno aberto com suas anotações. Aqueles olhos negros carregavam em si um mar infinito de doçura sempre que sua dona queria, mas também eram capazes de carregar a intensidade do mundo inteiro. De um jeito ou de outro, era uma aventura encará-los tão fundo como agora.

— Você apontou muito bem — a loira sorriu delicadamente para ela, aos poucos começando a perder o nervosismo. — Certos jovens. Alguns. A exceção à regra. Regra essa que, com o aborto cem por cento legalizado no Brasil, continuaria sendo a de que se trata de uma medida extrema, tomada por uma mulher em desespero ou, no mínimo, desamparada. Por exemplo, eu tenho certeza de que nenhuma mulher, no mundo, algum dia acordou ou vai acordar de manhã e pensar: "Mm, eu transei com o meu namorado semana passada, desprotegida. Minha menstruação tá atrasada. Vou comprar um teste de farmácia. Não quero ter um filho, então, se der positivo, eu faço um aborto rapidinho. Depois, acho que vou passar na feira".

A turma soltou suaves risadinhas devido à pitada de leveza que Soraya deu à hipótese. Até o professor, sentado no centro da primeira fileira de carteiras, observando os alunos de pé à frente do quadro branco, curvou seus lábios para cima minimamente. Simone também riu, quase imperceptivelmente, baixando um pouco a cabeça.

— Não funciona assim — a mais nova prosseguiu, satisfeita e ainda mais confiante. Olhou brevemente para suas anotações e logo voltou a fitar o negro cativante dos olhos de sua melhor amiga. — Nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado há exatamente trinta anos, não existe um único indício concreto de que o procedimento tenha sido banalizado ao longo desse tempo. Inclusive, estudando lá, eu fui colega de uma menina que engravidou aos dezesseis anos. Largada pelo namorado e filha de pais conservadores, ela cogitou abortar, porque sentia que não tinha ninguém, tanto que veio desabafar comigo sobre isso e nós nem éramos amigas. Nesse dia, eu fiz pra ela a pergunta mais óbvia que me ocorreu: "Você já falou com os seus pais?". E ela, quase chorando: "Não. Eles vão me matar". Eu aconselhei ela a falar com eles mesmo assim. E eles não mataram ela. Pelo contrário, acolheram. Ela teve a criança e conseguiu concluir o ano letivo depois. Eu entendo que nem todas as meninas têm a mesma sorte ao ter que lidar com uma gravidez não planejada, principalmente aqui no Brasil, onde a questão financeira é um impeditivo tão grande. E é exatamente por isso que esse assunto precisa ser debatido aqui. Assim como qualquer mulher, essas meninas precisam de suporte antes de decidir se a medida extrema é o melhor pra elas. E, por suporte, entende-se: estabilidade mental, familiar e financeira. Geralmente, o aborto se torna uma opção quando um ou mais de um desses três pilares falta. Porque, no fundo, ninguém quer abortar. Mas, se uma mulher opta pelo aborto, pela medida extrema, ela precisa passar pelo processo de maneira digna. E essa dignidade tá única e intrinsecamente ligada à legalização.

Pedacinhos de Nós (Simone e Soraya)Onde histórias criam vida. Descubra agora