Raio

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Campo Grande, domingo, 12 de setembro de 2010.



Simone,


Fazia tempo que eu não te escrevia.

Fazia tempo, aliás, que eu não pensava em você.

Quer dizer, fazia tempo que eu não permitia que algum elemento do meu cotidiano me levasse até você de forma tão vívida. Porque pensar, eu sempre pensei em você. Só que esses pensamentos ficavam guardadinhos no fundo do meu subconsciente, num lugar ao qual nem eu mesma tenho fácil acesso. E eu evito fazer eles emergirem pro meu consciente, porque dói quando me dou conta de que pensamentos são tudo o que eu tenho. 

Mas, na noite de hoje, eu, de fato, pensei em você. E foi tão fácil, tão intenso, tão instantâneo, tão... estonteante!

Deus! Lendo todos esses adjetivos no papel, eu admito que tenho alguma vontade de te escrever em inglês, só pro caso de, se o César cruzar com essa carta algum dia, ele não entender. Se bem que o meu inglês anda meio enferrujado. Faz tanto tempo que eu não leciono! Além do mais, a Bela tá grande; ela já não acha mais tão divertido ficar conversando comigo em inglês quanto ela achava quando era mais nova. Então, eu quase não pratico mais. E outra: em inglês não tem saudade. E não dá pra falar de você sem falar de saudade. Essa saudade que é a última coisa que ainda me conecta a você. Geralmente, a gente se dá bem, eu e ela, porque ela te traz pra mim numa lembrança agridoce (na maioria das vezes, mais doce do que acre), mas, vez ou outra, ela é ingrata, porque me dá uma pontada no peito. Como agora.

Choveu forte o dia inteiro hoje e eu acabei de ver um raio pela janela do meu quarto. César viajou, eu estava deitada na minha cama, sozinha, virada pro lado da janela, e então eu vi, entre uma fresta na cortina, ele rasgar o céu. Tão bonito, cercado por uma luz arroxeada. Como uma boa protegida de Santa Bárbara, o que eu senti não foi medo, e sim fascínio. A adrenalina de uma tempestade brava. Mas, aí, eu lembrei de como você, sim, tem medo de tempestade.

Quantas vezes eu já não te vi tremer ao som de um trovão, fechar os olhos por um segundo, sussurrar um "nossa...!" e levar a mão ao peito, rezando pra que não chovesse tão forte por tanto tempo? Eu achava graça, e te achava uma graça. Tão encantadora quanto a força da tempestade.

E daí pra te imaginar no quarto comigo, olhando pela janela, foi um pulo. Ai, Simone! Se você soubesse quantas vezes eu te vi dividindo algum cômodo comigo em todos esses anos! Eu imaginava longas conversas nossas. Te imaginava interagindo com a Bela em todas as fases dela. Imaginava as nossas três meninas. E os delírios eram sempre tão vívidos que eu sentia que podia esticar um braço e te tocar. Ouvia tão clara a tua voz. O teu riso. Dentro de mim. E dessa vez não foi diferente.

Primeiro, eu te vi paradinha junto à janela, tensa, olhando a chuva com os braços cruzados. Eu só sentia uma vontade enorme de relaxar os teus músculos. Passei as mãos pelas tuas costas, pelos teus ombros e pelos teus braços. Juro que senti a maciez da tua blusa e o gelado da tua pele. Deixei um beijo no teu ombro e um "vem deitar" escapou tão fácil da minha boca! Tudo é fácil com você, Simone. Tudo. Menos suportar a tua ausência.

Mas, já que era pra fantasiar, eu fantasiei direito. Te imaginei, em seguida, na minha cama, nessa cama em que eu tô te escrevendo, com o caderno apoiado no travesseiro. Me imaginei circundando o teu corpo por trás, encaixando as tuas curvas nas minhas, desfazendo a tua tensão, te aquecendo. E o calor foi tão real que me deu vontade de chorar. As lágrimas embaçaram por um instante as letras e as linhas, e a caneta começou a escorregar da minha mão por culpa do suor. Por culpa de como o meu corpo estava reagindo a você.

E foi depois de traçar o sublinhado acima que eu precisei fazer uma pausa. Uma pausa pra escutar o meu corpo e dar a ele o que ele me pedia. O intenso som da chuva camuflou os meus gemidos. Por isso, me permiti gemer do início ao fim. Enquanto movia a mão direita em círculos entre as minhas pernas, sob o edredom, segurava o caderno com a esquerda, lendo as palavras que tinha escrito até então. Elas intensificaram tudo. E não, eu não me senti uma pecadora. Muito pelo contrário. A primeira coisa que eu senti quando deslizei as pontas dos dedos pela minha umidade, imaginando que eram os seus dedos, foi que já era tempo.

Essa não foi nem de longe a primeira vez que eu senti vontade de fazer isso, mas foi, sim, a primeira vez que eu agi de acordo. E talvez eu nunca tenha agido de acordo antes por um misto de negação e de um respeito profundo por você. Mas não é como se, agora, eu não te respeitasse mais, obviamente. Acho que é só... carga energética acumulada por anos e anos. Em algum momento, essa descarga precisaria acontecer. Como aquele raio que eu vi pela janela. Uma manifestação tão bonita da natureza não tem como ser errada, tem?

Não, não tem. Eu sei que não tem. Eu senti aquele raio que rasgou o céu me rasgar por dentro hoje, Simone. E foi maravilhoso! Eu me senti uma força da natureza. E tudo graças a nós. Ao que nós fomos. A esse sentimento tão indescritivelmente profundo que eu ainda nutro e sempre vou nutrir por você. Um sentimento que me mudou como ser humano. Que me melhorou. Um sentimento que nem Deus nem o Diabo vão poder tirar de mim. Porque ninguém te tira de mim, Simone. Eu já tentei me convencer do contrário. Depois que a gente se afastou, eu tentei me reconhecer sem você, mas isso é impossível. Você vai ser pra sempre parte de mim. Eu não existo sem você, e eu não digo isso num sentido romanesco, e sim no sentido de que você ajudou a compor essa mulher que te escreve tudo isso agora. Se te tirassem de dentro de mim, o meu eu do presente não existiria. E, por isso e por tanto mais, eu te agradeço.

Então, a partir de hoje, se alguma lembrança sua vier atrelada a uma exigência urgente do meu corpo, prometo que não vou mais me conter. Prometo que vou deixar o orgasmo me rasgar por dentro. Afinal, essa é uma energia potente, fascinante e (por que não?) sagrada demais pra ser contida.

No mais, eu peço a Santa Bárbara que te proteja e te acalme nessa noite tempestuosa, já que eu não posso fazer isso. Também peço a ela que faça os nossos caminhos se cruzarem de novo. Eu nunca perco as esperanças. Mas, até lá, sei que posso te encontrar e te sentir em mim inteira, sonhando adormecida ou acordada.


Com amor, saudade e desejo, sempre,

Soraya.

Pedacinhos de Nós (Simone e Soraya)Onde histórias criam vida. Descubra agora