Nós não alcançamos as estrelas nem fomos perdoados, o que nos traz de volta para os ombros do herói e a gentileza que vem não com a ausência de violência, mas apesar de sua abundancia.
Richard Siken, "Snow and Dirty Rain"
Nos sonhos de Madalena, as montanhas de Tenas queimavam. Os exércitos inimigos marchavam pelas ruas pegando fogo, sombras apenas vagamente humanas emolduradas pelas chamas de toda a destruição que tinham causado, escolhendo e arrancando garotas em meio à multidão e as arrastando para destinos piores do que a morte enquanto suas botas de couro pisoteavam o sangue derramado tanto dos guerreiros quanto dos civis derrotados.
A neblina congelante do começo da manhã, a fumaça escaldante que tinha desolado aquelas terras. Quando ela fechava os olhos, tudo, desde os berros dos prisioneiros até o cantar dos passarinhos, se fundia. Virava a mesma coisa.
Madalena não tinha estado lá quando aquele pequeno vilarejo foi o primeiro território de Helades a ser tomado, mas ela nunca precisou estar presente para Ver algo. Um dia isso tinha sido uma benção.
Fazia oito anos desde o começo da guerra, dois desde o fim. Apesar de sua presença ainda ser relativamente nova, tendo chego naquelas partes rurais apenas um ano antes, ajudar os moradores a reconstruir o vilarejo e ensinar os filhos deles serviu para os fazer aceitá-la com muito mais facilidade do que aceitavam outros desconhecidos.
A casa que ela tinha recebido ficava no centro de Tenas, o quarto no precário segundo andar: quando acordava, a primeira coisa que fazia depois de sair da cama era enfiar a cara pela janela e sentir o ar gélido no rosto, acenar para o padeiro arrumando suas mercadorias enquanto tomava inventário das montanhas no horizonte.
Queimadas, sim, mas por um fogo que já tinha a muito se apagado.
Era apenas no fim de cada mês e apenas depois das aulas do dia terem acabado, quando todas as crianças tinham retornado ás suas famílias e os órfãos tinham sido tão hesitantemente separados dela, que Madalena se arrumava e ia para as montanhas. A túnica e o manto eram grossos, desconfortáveis onde o tecido irritava as cicatrizes da mulher, onde a borda lhe roçava os joelhos e coçava, o cinto amarrava o quadril sem muito adorno.
Era até cruel lembrar da seda dos antigos vestidos, os rubis nos broches, o ouro nos ouvidos cujos furos até já tinham se fechado.
Ela tentava não lembrar.
Para cada rosto que via no caminho, Madalena sorria, suave com reconhecimento. Para cada aceno que recebia de volta, cada sorriso retribuído, ela Via o que eles tinham perdido e o que os soldados tinham feito com eles. Não havia uma pessoa intocada, nem a mais nova das crianças sob seus cuidados, e as cenas eram cravadas nas pálpebras dela toda vez que ela piscava.
Mas ela olhava para o horizonte que a assombrava toda noite e sabia que tinha que seguir em frente.
A terrível caminhada já estava se tornando intimamente familiar, apesar de não haver nenhuma marcação de caminho para a impedir de si perder como muito fez em suas primeiras tentativas. A bengala dela marcava uma própria solitária trilha na fina camada de barro cobrindo a terra.
Uma lufada de vento gélido fez com que fios vermelhos se soltassem da trança de Madalena, roçando pelas bochechas escuras dela como se a brisa a beijasse. Os encontros e distantes acenos foram diminuindo em frequência e por fim acabaram completamente uma vez que suficientemente distante do vilarejo. Ela caminhou em silêncio, assobiando a suave melodia de uma das suas canções sacras, tentando se distrair da dor nos músculos tensos de sua coxa.
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Morte Da Profeta ✔️
RomansaConcluída. Na capital encantada de Helades, duas meninas tinham crescido lado a lado em uma rivalidade explosiva. Uma década depois de serem separadas elas se reencontram em um vilarejo no meio do nada, agora com os corpos e mentes transformados pel...