Ligia Catarina

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[Errata: este testemunho se encontra incompleto pois boa parte das fitas de áudio gravado e testemunho escrito se encontra danificada pela ação do tempo, as equipes de restauradores especializados do Instituto de Resgate do Legado de Montrávia estão trabalhando arduamente para recuperar as peças faltantes do depoimento a serem divulgadas ao público assim que forem propriamente restauradas e traduzidas]

O Contexto

MOSTEIRO DAS IRMÃS SAGRADAS, VALE AUGUSTUS

[É véspera de Natal. Passar por entre estes portões ainda é um tabu para muitos, levando em consideração os acontecimentos que tomaram parte dentre estas ruínas a tão pouco tempo, entretanto, para aqueles cuja fé ultrapassa qualquer barreira supersticiosa, este solo sagrado, banhado pelo sangue das mártires, já se tornou destino de suas peregrinações, mesmo agora. Como é o caso da mítica comandante dos Filhos de Montrávia, Ligia Catarina, a "Amazona". A encontro a rezar, ajoelhada e com um terço em mãos perante as infames escadarias da antiga capela no pátio central do mosteiro. Aguardo educamente a senhorita Catarina, ou devo dizer, senhora Albieri, concluir suas preces. Vejo-a movimentar seus braços calculadamente a fazer o sinal da cruz, entendo que este é o sinal para minha deixa, porém, permaneço em meu lugar. Ao ver a comandante se levantar, compreendo de imediato as características físicas que a fizeram tão icônica a ponto de estampar centenas de cartazes de propaganda para a Resistência. Ao me ver, imediatamente abre um fino e simpático sorriso. Sua postura é contida e graciosa, contrastando com a primeira impressão ao ver uma mulher com sua aparência. Começamos a caminhar lado a lado, e minto ao dizer que não me senti de certa forma desconfortável, no entanto, logo ponho de lado esta sensação ao perceber quão querida é nossa comandante. Ainda com o terço em mão, ela começa.]

O ano em que nasci foi o mais turbulento da década para o nosso país, nasci na miséria, em meio a invasão Aliada e a Guerra nas Montanhas, meu pai estava longe, nos Alpes, a lutar contra os italianos pelos austro húngaros. Quando os italianos e ingleses desembarcaram em nossas praias e tomaram a capital, minha mãe, Brenda, me carregando em seu ventre e meu irmão mais velho, André, nos braços, se juntou à multidão do Êxodo para o Leste, onde ouviram que os albaneses iriam nos ajudar, porém, as dores do parto a obrigaram parar no meio do caminho. Encontramos abrigo aqui, [Faz um gesto englobando as ruínas à nossa volta] nesse local sagrado, eu nasci aqui, bem neste local, a enfermaria, [Aponta para o chão chamuscado aos nossos pés]. Graças a Deus, minha mãe decidiu por ficar por aqui até receber notícias do meu pai, depois que ficamos sabendo do massacre que a população civil sofreu devido ao frio nas montanhas, me vem à cabeça que apenas Deus, ou nossas Santas Mártires, intervieram em nossas decisões naquele dia, para virmos parar aqui. Um ano foi o tempo que passamos neste mosteiro, com as Irmãs. A última notícia que tivemos de meu pai foi que ele havia sido ferido gravemente em Isonzo. Depois disso, mais nada, sabíamos que a Guerra estava correndo muito mal para o nosso lado, no entanto nem sequer sabíamos como ela estava se desenrolando no nosso próprio país. Eu não me lembro de nada, obviamente, no entanto, segundo os relatos da minha mãe, todos os dias chegavam mais e mais feridos a enfermaria do mosteiro, Montravi, soldados e civis, em sua maioria, mas também, invasores, havia uma dose igual, senão maior de soldados italianos ou ingleses ou até mesmo indianos feridos sendo acolhidos pelas Irmãs. Minha mãe ajudava a cuidar de alguns como enfermeira voluntária após as freiras lhe ensinarem algumas coisas. Ensinamentos que passou para mim. Até hoje não entendo como esse lugar não foi alvejado pela artilharia ou pelas aeronaves durante os meses de combate, talvez, porque sabiam que as Irmãs tratavam dos feridos deles também, mas gosto de acreditar que há, ou melhor, havia uma benção Divina sobre este local. Assim como Villa Raphaela. Você sabia que, apesar da proximidade com a capital, nunca uma única casa foi destruída naquela cidade? É de se pensar. Não. É de se crer! Minha mãe podia ver os clarões das explosões nas montanhas daqui. [Ligia aponta para o sul da muralha do mosteiro onde, a quilômetros, que parecem ser apenas alguns metros, descansam as formidáveis montanhas que dividem o país, agora, porém, com uma grande área vazia onde antes ficava o Monte Nero].

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