Antecedentes - Lucio Roth

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Lucio Roth

Asilo Militar de Inválidos da Santíssima Providência, Cantarella, República de Montrávia

[Luccio Roth é um homem de feições deprimidas, porém, de constituição física robusta levando em consideração seu estado de vida atual. Um veterano da Grande Guerra e um dos pioneiros de nossa aviação, protagonista de ações ousadas tanto no conflito anterior quanto durante o mais recente. Barba por fazer, olheiras a marcar o inferior de seus olhos, pele pálida, o Major Luccio não me lembra em nada o aviador aventureiro intrépido ao qual tive o prazer de entrevistar durante suas façanhas, como quando cruzou o Adriático em um biplano Arado, sem paradas, pousando com sucesso em Nápoles na Itália. Não o culpo. É deveras uma pena os acontecimentos que se sucederam durante a invasão italiana. Encontro-o em seu quarto no asilo para veteranos inválidos em Cantarella, fui informado que o Major se recusou a deixar suas acomodações desde que fora resgatado das ruas após a libertação. As cortinas estão fechadas mesmo com suas janelas dando visão para a esplendorosa beleza natural das falésias de Cantarella, deixando o quarto em um breu eterno. Ao entrar no cômodo, sou recebido apenas com um olhar frio. Lúcio está sentado em sua cadeira, observando as cortinas cinzentas como uma gárgula nas arestas de uma catedral.]

Deixei claro que não queria que ninguém me visse nesse estado. Sou apenas um velho esperando a morte. Não sou mais o herói que decolou de Santoro e afundou o HMS Lionheart na guerra passada, não sou mais o herói que viam em mim. Existem outros para ocupar este lugar.

Major, esta entrevista não tem nada a se relacionar com aparências. Estou aqui para registrar seus feitos e testemunhos para as gerações que hão de vir. Quero captar as verdadeiras almas por detrás das lendas. Então, vamos do começo. A Invasão Italiana.

Se querem saber a verdade, então, é a verdade que vou dar a vocês. Quando os italianos começaram a nos bombardear, eu estava estacionado na pista de pouso de Cássia. Afinal, a missão da 1ª Esquadrilha de Combate era defender a área entre Santa Adahlia e Candela, onde a Armada estava ancorada. Veja, as cagadas do nosso governo, e eu digo desde a nossa saudosa monarquia, já começaram aí. Apesar da denominação, nós não éramos uma força aérea propriamente dita. Por Deus! Só tínhamos dois esquadrões de aeronaves em 1940 quando os italianos atacaram! Um era o meu, e o outro o 1º Esquadrão de Reconhecimento Aéreo da Armada, os doidos da "Esfinge"! E nós nem éramos independentes! Desde a Grande Guerra éramos vinculados à Marinha, sem sentido algum! Consegue entender? Estávamos atrás de todas as potências mundiais nesse quesito! Até os chineses tinham uma força aérea própria e nós não! Dois esquadrões que totalizavam uns dezoito biplanos Cipriani lentos e ultrapassados! Nossos regimes sempre deram muita ênfase no Exército, relegando outros setores, nossa Marinha, que deveria ser nosso escudo, não passava de um encouraçado de trinta anos, o "Sanctus Princips" e quatro destróieres apoiados por uma porção de torpedeiros, não a toa que foram afundados nas docas pelo monstro do Vittorio Veneto. E nós, os aviadores, que deveríamos ser o teto sob as suas cabeças, não passávamos de um braço, não, um dedo, de uma mão defasada e esquecida no tempo. Quando recebemos nossas primeiras aeronaves dos alemães em 1916, aqueles Fokker monoplanos, estávamos à frente da maioria, por mais que fossem apenas seis deles. Mas aí veio a invasão Aliada, tivemos que nos retirar a Leste, além das montanhas, pelo menos conseguimos nos provar dignos de lutar olho a olho com nossos inimigos. Principalmente depois que afundamos a Nau capitânia dos ingleses. [Vejo um lampejo do homem que conheci a vinte anos] Ah! Aquilo foi lindo! Aí, nós perdemos e, no meio do caos que se seguiu, nós, aviadores, fomos lentamente sendo esquecidos, os Fokker se tornaram ultrapassados, assim como nós. Desde essa época eu advocava pela modernização e criação de um corpo aéreo próprio, pois, nós não teríamos chance alguma caso fôssemos atacados por um poderio estrangeiro novamente, mas ninguém me ouvia. "Não temos verba pra isso". "Depois pensamos nisso". Era só o que eu ouvia. Essa exclusão e miséria levaram bons companheiros meus a tomar cabo da própria vida, você deve lembrar não é? Giraldi, Sofia - essa era uma pioneira, forte, decidida, não tínhamos homens o suficiente então aceitamos qualquer voluntário - , Diógenes, Héracles... Você reportou a morte de todos eles. Enfim. Então, veio a guerra civil. E me vi nos ares novamente. Digo, essa parte da minha carreira foi fácil, atacar alvos em solo, sem nenhuma oposição aérea, os comunistas não tinham nem soldados treinados, muito menos pilotos, e sem uma única bala de artilharia sequer roçando nas minhas asas, era como atirar em patos. Sabe? As coisas começaram a melhorar um pouco. Depois da vitória sobre os vermelhos, imaginei que o novo regime iria botar as rodas no trilho, eles até enviaram a mim e mais quatro pilotos para a Itália e França para aprender novas táticas de combate e organização. Mas, como sempre, investiram no Exército, pois, se tem uma coisa que gostamos mais que combater estrangeiros, é combater nós mesmos. Eu sou do Leste, como pode ver no meu sotaque, então, sei bem disso. Claro, nos deram nossos próprios caças, os biplanos Cipriani CR-30, mas estavam longe de bater de frente contra os Macchi italianos ou Heinkel alemães. Nunca fomos bons em produzir nada além de armas para infantaria. Participei do Cerco de Ascara, novamente, apenas ataques ao solo, mas não tenho orgulho do que fiz nessa época. E antes que me acusem de mil merdas, eu digo: sim, usamos armas químicas contra os revoltosos, eu mesmo joguei algumas delas, não escondo meus pecados, nem tento justificá-los, só entendam que a guerra destrói o homem, e fazemos coisas que nos assombram até as nossas mortes. Daí veio toda aquela confusão com os crimes de guerra da antiga gestão e toda a burocracia de envolver o Comitê nas decisões militares, e, novamente, ficamos esquecidos, enquanto as forças terrestres recebiam tudo do bom e do melhor. Particularmente as primeiras horas da invasão foram bem agitadas, decolei em trinta e sete sortidas, derrubei cinco C.200 dos italianos e meus colegas, que Deus vos tenha, outros dez, claro à custa de seis dos nossos que nem sequer conseguiram decolar, eram jovens na maioria, dos poucos voluntários que recebemos, nunca tinham voado uma única missão de combate. E nunca voaram. Quando a elite que estava no Leste cruzou as montanhas para aliviar a pressão da capital, só eu e mais três pilotos, todos veteranos, estávamos em condição de cobrir o avanço deles naquele desastre do Valle Augustus. Digo, que plano imbecil foi aquele? Mandar todas as nossas melhores unidades atacar o ponto de defesa mais forte do inimigo, como uma ponta de lança, pra tentar abrir um rombo na linha deles, ao invés de lutarem uma guerra de atrito nas montanhas e quando fosse o momento certo retomar pontos chave como nossas cidades portuárias, colinas e abrir a Via Alba? Tudo porque nossos burocratas estavam se cagando de medo cercados na capital. Sim, o vale realmente seria um caminho mais rápido para uma manobra de flanco, mas não com toda a porra da artilharia italiana concentrada nas suas bordas! E pior! Nos proibiram de decolar de Cássia para ajudá-los! Queriam que ficássemos lá, parados, assistindo o massacre como guarda costas pessoais deles! É óbvio que eu desrespeitei essas ordens idiotas! Mas eu estava pouco me fodendo com a possibilidade de ser executado por uma corte marcial! Não foi a primeira vez que ouvi isso. Mas sabia que seria a última.

Como assim?

Ora! Eu sou louco, mas não idiota! Só havia restado quatro de nós. Uma proporção de cinco para um. Eu sabia que no momento que eu entrasse no cockpit daquele biplano, estaria assinando meu atestado de óbito. Era suicídio, sabíamos bem disso, mas não podíamos deixar nossos irmãos no solo serem massacrados sem chance de contra-atacar! De uma forma ou de outra, tudo ia pro caralho por causa dessa ofensiva da imbecilidade! Colocamos o máximo de munição possível nos caças, bombas, combustível, tudo! Sabíamos que não teríamos tempo de voltar para reabastecer. Sabíamos também que esse peso extra nos colocaria em xeque com os italianos. Formamos duplas, um piloto ficaria encarregado de atacar as posições inimigas em solo enquanto o outro daria cobertura. Era o máximo que podíamos fazer. Assim que decolamos, os Macchi apareceram. Vincenzo, meu ala, tratou de afastá-los da minha cauda enquanto eu mergulhava para destruir a primeira bateria. Boom! Acertei na mosca! Como sempre! Bolas de fogo saltaram aos céus atrás de mim enquanto ganhava altitude! Do alto eu conseguia ver muito bem a batalha no vale. Só enxergava carcaças de blindados fumegantes em filas em campo aberto enquanto outros avançavam junto com a infantaria para se juntar ao matadouro. O sangue se misturava com óleo e gasolina nas águas do rio Milagro. Os canhões italianos disparavam sem parar. Conseguia avisá-los de imediato, mergulhando o nariz do caça em seguida. Destruí uma dezena de baterias presas nas encostas do vale, eu acho, não conseguia contar, não conseguia pensar, eu tinha apenas um foco: destruir o máximo de peças de artilharia o possível. Quando as bombas acabaram, usei as metralhadoras do nariz. Então, ouvi pelo rádio Vincenzo gritando que estava sem munição, e quando vi, o caça dele havia sido abatido. Uma bola de fogo magnífica iluminou os céus, todos devem ter visto aquilo. Bem a cara daquele bastardo extravagante que só quis pilotar um avião para atrair as mulheres. Morreu virgem e solteiro. [Uma pausa. Vejo lágrimas se formarem nos olhos do major que rapidamente seca com uma flanela] Éramos tão atrasados que nossos caças nem tinham um sistema de ejeção, não tínhamos nem espaço na cabine para um paraquedas. Quando dei por mim, todo meu esquadrão havia sido derrubado. Minha fuselagem não passava de uma carcaça perfurada por mil balas, parecia um queijo suíço, óleo vazava do motor e escurecia minha vista, minha metralhadora esquerda enguiçou e o combustível estava acabando. Sabia que logo iria enfrentar o mesmo destino dos meus colegas, mas não iria cair sem lutar. Meus ataques ao solo já não tinham mais efeito. Voltei minha atenção para os italianos que me perseguiam no céu. Seis caças Macchi estavam tentando me derrubar. Fui pra cima deles com tudo que me restava. Consegui derrubar um e danificar outro, foi aí que uma rajada certeira arrancou toda minha asa esquerda, perdi o controle da aeronave, comecei a cair em espiral. Não sei como não morri. Talvez, os pinheiros gigantes da floresta negra tenham desacelerado a queda já que meu avião ficou preso em alguns galhos deles. Foi nessa hora que minhas pernas foram amputadas pela fuselagem. Deus, como aquilo doía. Ainda dói. Fui resgatado pelos rapazes dos Vigários, eles cortaram a carne e o músculo que me prendiam às ferragens. Eu não os culpo, só fizeram o que tinham que fazer. Graças a eles estou vivo, se bem que hoje já não sei mais se não era melhor ter morrido lá naquele dia. Agora, eu sou só um velho inválido que não consegue nem ir cagar sozinho, preso eternamente a essa cadeira de rodas maldita, sem ter contribuído em nada na libertação deste país! Como disse, eu não sou mais o herói de antes. Não tenho mais utilidade.

Bom, é isso o que tenho a dizer. Já tem seu depoimento, agora, por favor, deixe-me sozinho.

[Após a captação de seu relato, Major Roth fora convidado a compor a nova junta militar para a modernização de nossas forças armadas, sendo encarregado de reconstruir a nossa força aérea com sua estratégia de modernização que viria a ser conhecido como Plano Roth. Major Luccio Roth faleceu no dia 5 de janeiro de 1947, dois dias antes da publicação deste livro, devido a uma infecção em seus ferimentos. Atualmente, sua memória está eternizada ao lado de dezenas de outras personalidades distintas, heróis de outros tempos e do nosso, no Panteão de Santa Adahlia.]


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