O Anjo - Nguyen Ahn

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O Anjo

Praça da Libertação, Santa Adahlia, República de Montrávia

[Para preservação de informações nocivas à ordem pública, certos trechos deste depoimento foram censurados pelo Comitê de Preservação Histórica do Levante seguindo diretivas do Comando do Estado Maior Aliado, do setor de Inteligência da Divisão de Operações Conjuntas Aliadas e da Junta Provisória Governamental da República de Montrávia]

[Aos pés da Arquidiocese de Santa Adahlia e em meio aos três pilares de poder da nação, O Palácio Federal, A Câmara Popular e o Tribunal de Justiça, ergue-se a fundação do que virá a ser o monumento em prol da lembrança do Levante. Segundo informações divulgadas pelo governo provisório, o marco será composto por uma pilastra jônica de quatro cantos e dezesseis metros de altura, com esculturas representando os nossos Libertadores em sua face sul em direção ao porto, com os nomes daqueles que sacrificaram suas vidas pela nossa liberdade entalhados em suas outras três faces, em seu topo será reproduzida a icônica cena capturada por minha câmera do momento em que Antônio Albieri ressurgiu do interior do blindado capturado, empunhou a flâmula púrpura com a cruz e espadas de nosso país e urrou a plenos pulmões para todos aqueles que os seguiram o lema que a mais de um milênio define os passos de nosso povo, reavivando a chama da resistência nos corações dos combatentes que avançaram sobre o último reduto nazista no Palácio Federal como a torrente impiedosa de água de uma represa rompida. No entanto, Albieri não estará só no pico deste marco, uma figura alada o acompanha, um anjo. Mais do que apenas um simbolismo, muitos acreditam, apoiados pelos estranhos acontecimentos do Dia Zero e outras ocasiões isoladas antes e depois do ano novo de 1942 para 1943, que no dia que nos livramos do julgo maligno da opressão nazista obtivemos a ajuda do Divino, alguns crêem em uma força invisível nos guiando naquele dia, outros acreditam em algo mais tangível: um arcanjo desceu dos céus trazendo a ira de Deus aos nossos inimigos. Uma destas pessoas é Nguyen Ahn, apenas um viajante do extremo oriente que, por mero infortúnio do destino veio a se assentar em nossas terras se tornando um dentre as centenas de estrangeiros que voluntariamente permaneceram aqui para nos ajudar a alcançar a liberdade, sendo um dos únicos sobreviventes da tenaz resistência de Rocca Menore e que viria a se tornar o mesmíssimo arquiteto do vindouro monumento, alega que o tal "arcanjo" lhe serviu de inspiração para a criação de sua obra de arte. Com seus evidentes traços que o destacam dos demais transeuntes e operários que compõem a cena em torno da construção da base do obelisco, não tenho dificuldades em encontrá-lo. Seu cumprimento é curioso e respeitoso, prostrando-se levemente para frente com mãos coladas ao corpo e apertando minha mão em seguida, vendo que já a havia estendido pois deduzi que este seria o modo que iria me saudar. Andamos para longe da cacofonia característica das reformas e da audição curiosa dos alheios. Após acender um cigarro, o senhor Nguyen apoia-se na mureta, fitando o fosso do canal que circunda o Palácio Federal agora com sua fachada tomada pelas cicatrizes dos combates.]

Hoje em dia quando olho para trás acho tragicômica a história de como um vietnamita veio parar num país dos Balcãs que até então ninguém sequer sabia de sua existência. Eu estava cuidando da minha vida, frequentando as aulas de arquitetura na universidade de Hanói, me preparando para a formatura no próximo ano quando em um belo dia os franceses me convocaram. E dois meses depois eu estava na França, mas não disparei um único tiro porque quando cheguei eles já tinham se rendido e os alemães já estavam marchando em Paris. Fui capturado e enviado para uma fábrica no subsolo da Alemanha. E um tempo depois me mandaram pra cá pra cavar uma montanha, nunca mais vi a luz do sol até o dia em que vocês me libertaram naquele Ano Novo apocalíptico. Estava eu longe de casa, derrotado, faminto e num país que nunca tinha ouvido falar onde para mim era o fim do mundo. Não me entenda mal, amo o seu povo, a sua nação, cultura, de fato, vocês me tratam melhor do que minha própria terra natal e é por isso que decidi chamar este lugar de lar, mas metade das pessoas na Indochina não sabem da existência deste lugar, assim como vocês também não saberiam da existência de meu país se eu mesmo não tivesse vindo parar aqui, e isso é completamente normal, até o início desta guerra ninguém se importava com o que acontecia no terreno de seu vizinho, não concorda?

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