Crash

Navalha

É impossível provar uma negativa. Sam afirmava que Nick estava morto, e eu insistia que não, então o ônus da prova era todo dele. A navalha de Hitchens é um conceito que explica que a obrigação de sustentar uma afirmação é de quem a afirma, e não de quem dela desacredita, afinal, como provar que algo não aconteceu se, bom, não aconteceu? Como dizer que um deus existe se você não pode tocá-lo, vê-lo e ouvi-lo? Não, ele não está escondido. Ele não existe, por isso não se pode provar que ele é verdadeiro. Se Nick estava morto, que Sam me provasse com um corpo; dizer que ele estava desaparecido ou que os vampiros haviam dado um jeito nele não era o suficiente. Sem corpo, sem crime.

Levando isso em consideração, eu não poderia perder as esperanças, mas conforme os dias passavam também aumentava a minha culpa por estar cada vez mais autocentrada, por pensar no que aconteceria comigo e no que eu me tornaria a qualquer momento dependendo do gatilho certo. Qual seria ele? Uma nota ruim ou um parágrafo mal escrito, quem sabe uma fórmula elaborada às pressas? Talvez um pneu furado. Eu ainda conservava todas as minhas funções biológicas desempenhadas pelo meu útero, e Leah ainda não havia mencionado nada muito detalhado sobre esses aspectos. Ela nunca dizia nada, me dava apenas migalhas de conhecimento. Passamos dias e dias dividindo um quarto - a grande cama de casal agora parecia um pouco apertada para duas mulheres de cerca de um metro e oitenta - e ela pouco se manifestou durante todo esse tempo. No entanto, parecia descansada, física e mentalmente. Ela parou de ouvir vozes e sentir presenças daquele bando masculino, e pela primeira vez em muito tempo dormiu uma noite inteira como um ser humano normal.

Eu não queria perturbar sua harmonia, mas as dúvidas me pegavam desprevenida o tempo inteiro. Precisei deduzir algumas respostas e tomei minhas próprias atitudes, a começar pelo cabelo. O meu corte teria de ser mantido com mais frequência, então fiz o que qualquer pessoa normal faria e assisti a um tutorial antes de tirar cinco dedos do comprimento. Se eu me transformar - quando eu me transformar -, me recuso a parecer um yorkshire mutante.

Me sentia confiante, e isso também me matava por dentro aos poucos. Não era justo que eu me sentisse tão confortável sendo eu mesma enquanto Nick continuava desaparecido. Tentei me convencer de que eu não era a viúva dele e não deveria estar de luto por uma morte que nunca aconteceu, mas ainda parecia um pouco errado acordar feliz e bem disposta para um novo dia. Meu humor alternava entre o melhor de todos e o pior cenário possível, sem meio termo. Eu poderia ser a protagonista feminina de um filme de terror sáfico passando pelo corredor da escola com a postura impecável sem perceber mais ninguém ao redor, mas logo em seguida eu compensava toda essa pose com algumas noites em claro e em modo penitente, pedindo perdão a um Nick imaginário por ser tão negligente com a sua causa. Eu sabia que lhe devia isso.

Eu também andava bastante arrogante, não poderia negar. Me sentava sozinha nas carteiras e mesas da escola com o exemplar de Chamado Selvagem, seguido por Caninos Brancos e os lia como se aquela cena fosse a melhor das piadas internas e todo o resto do meu pequeno mundo era ignorante demais para entender. Poderia chutar que Paul, Jared e também Jacob ganharam esse ar de superioridade depois da transformação e que por isso eu deveria rejeitar os trejeitos que me lembrassem tamanha aberração, mas não pude me conter. Eu quase estava ansiosa para que acontecesse para poder provar que comigo seria diferente, que como eu já havia decifrado "tudo", não seria um problema. Leah disse que as quase semanas em que Sam havia desaparecido da face da terra no ano anterior foi o tempo em que ele passou transformado sem ter a menor ideia do que havia acontecido. Ele precisou de doze dias até se acalmar dentro de sua nova forma monstruosa, uma eternidade febril, faminta e desesperada, e então ele se viu humano de novo. Concedi a ele um pouco do meu respeito, pois não conseguia imaginar como deveria ter sido fazer tudo completamente sozinho e ainda se tornar a pessoa plácida e impassível que ele era.