Leah

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As xícaras cheias de café eram mera formalidade. Imaginei que se minha mãe chegasse a qualquer momento ela gostaria de saber que eu fui minimamente educada com quem estava de visita; claro, ela ficaria ainda insatisfeita se eu não tivesse oferecido o bolo que sempre estava à disposição de qualquer um que chegasse, mas pelo menos eu não deixei o convidado de mãos vazias. A convidada em questão também não tinha tocado em nada à sua frente. Ela só me encarava com apreensão aguardando qualquer sinal de vida de minha parte. Há alguns bons minutos eu estava sentada do outro lado da mesa da cozinha, com o rosto apoiado na mão e um dedo indicador atravessando os meus lábios quase como se eu estivesse me calando naturalmente. Piscava poucas vezes, o suficiente para não deixar lágrimas se acumularem. Não era algo digno de se chorar, quer dizer, seja de medo, de confusão, qualquer coisa. Intuitivamente apelei para as minhas habilidades dedutivas, meu raciocínio rápido para a lógica, era isso que eu sabia fazer bem. Os resultados, como os de várias boas teses, foram inconclusivos.

Leah me pediu para dizer algo porque ela estava ficando nervosa.

- Eu sabia que você merecia mais do que estavam lhe dando - ela continuou sem me ouvir manifestar. - Ouvi dizer que você não quis saber de toda a história, mas a versão que você tinha é bastante injusta. Há muito mais que te envolve do que te contaram.

De fato, o que é que me contaram?

- Acho que algo mudou no segundo em que eu decidi te procurar - Leah trocou sua face séria por uma que parecia cheia de autopiedade. Movi meus olhos do vazio para fitá-la com mais atenção. - Horas atrás eu mal poderia pensar em algo parecido que eles teriam me pego de surpresa, então você deve imaginar como eu tive que tomar cuidado - ela descrevia algo como se eu entendesse cem por cento do background. - Decidi deixá-los e foi como se eu tivesse me livrado de um peso, o que é exatamente como eles me enxergaram esse tempo todo. Um acaso do universo que eles precisavam tolerar, um fardo a carregar. O jeito que eles falam de mim, que pensam de mim mesmo sabendo que eu posso ouvir. E quando não os ouço, eu sinto e depois contamino a todo mundo com esse descaso sem fim. Quando fazem força para te ignorar, fingem até que você não está em seus campos de visão, que não veem a sua cor, não sentem o seu cheiro por perto. E quando são obrigados a reconhecer a sua presença é sempre com tanto... - ela deu ombros para si mesmo e engoliu seco. - Com tanto desprezo.

- Como assim... - eu quase a interrompi. Pareceu errado; por mais que ela quisesse que eu dissesse qualquer coisa, senti que eu soava extremamente inconveniente ao me pronunciar enquanto ela falava. - Que pensam de mim?

Ossos do ofício - Leah se encolheu mais uma vez. - Quando estamos transformados compartilhamos uma única consciência.

Como um fungo, como uma infestação.

- Não há privacidade, não há segredos e, como pode imaginar, não há respeito. Pelo menos não por mim. Mas eu sei que sou difícil de tolerar, como acho que você seria também. Sem ofensas.

Não me parecia ofensivo se eu não sabia o que ela queria dizer.

- Por causa de Sam eu sei que tenho sido difícil - Leah continuou. - É como se o ressentimento de uma pessoa fosse multiplicado por... Acho que somos sete agora. Éramos. De qualquer forma, tudo de ruim, assim como os pensamentos, se espalhava, tudo por minha causa.

- Foi Sam que trocou você por outra pessoa, não foi? - eu me ouvi dizer. - Não vejo como é sua culpa se você se sente mal. É inevitável.

- Exatamente, Ray - ela sorriu com amargura. - Foi inevitável, e você deve saber o que foi.

Pensei que havia passado por choque o suficiente por uma vida inteira em questão de poucos meses, mas não havia chegado nem perto do que Leah começou a me contar. Inevitável era a palavra de ordem para um conto extraordinário sobre supostas almas gêmeas, sobre suposto destino, sobre um suposto Darwinismo sobrenatural que, de maneira alguma, havia passado por qualquer rigor de método científico para ser sequer debatido como uma hipótese. De ciência eu entendia e aquela história não era certa como dois mais dois são quatro. Pedi que ela repetisse algumas partes. Pedi que desse exemplos - e ela os tinha, muito próximos por sinal.

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