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Competir com memórias era um jogo perdido. Era jogar a toalha antes mesmo de pegá-la e derrubar as armas no chão antes de tentar levantá-las. Competir com memórias era como brigar com um inimigo que não se pode tocar ou ver e ela nunca soube muito bem como derrotar qualquer coisa que não pudesse sufocar com as próprias mãos e sentir a vida se esvaindo entre os dedos. Ela podia brigar com qualquer coisa que podia matar, mas não sabia muito bem como fazer isso com um fantasma, como sufocar com as próprias mãos as memórias de alguém que não estava lá há anos. Era uma batalha perdida e ela nunca tentou dizer o contrário, nunca tentou se convencer de que em um mundo onde Agatha estivesse viva ela seria escolhida, nunca tentou ser tão amada ou tão desejada. Competir com um fantasma era bater em uma parede de concreto, o que no máximo conseguiria era se exaustar, machucar alguns dedos, sangrar um pouco, mas não derrubaria.

Mas agora o fantasma estava ali, feita de carne, ossos e os olhos da mulher que ele mais amou — a única mulher que ele amou.

Lutar contra um fantasma era difícil, lutar contra a pessoa em si era degradante e desgastante.

Ele estava apaixonado, como se o tempo não tivesse passado, como se a morte de Agatha e os trinta e um anos desde que isso aconteceu não tivessem existido, ele estava olhando para ela como se a morte não tivesse minguado nem um pouco daquele amor. Ela quis apertar o pescoço e sufocar os dois nesse sentimento ridículo. Ele estava apaixonado daquela maneira patética como se nunca tivesse visto nada tão bonito e tão singular em toda sua vida, só precisou de um segundo para perceber o olhar dele, a maneira que ele olhou para Agatha no primeiro minuto em que a viu foi a maneira que ela esperou por trinta anos, foi a maneira que ela se pegava olhando para ele as vezes, era a maneira que ele nunca ninguém olhou para ela.

Agatha conseguiu em sessenta segundos o que ela esperou por quase trinta anos. Era um jogo um pouco injusto, um desequilíbrio que ela não sabia exatamente por onde começar a balancear. Ela o odiou por isso. O odiou pelo olhar marejado, pelo sorriso, o odiou pelo fascínio e por a deixar ir embora de casa no meio daquele caos sem sequer olhar para porta uma vez, sem titubear se era uma boa ideia deixar a esposa sair no meio da noite depois de um choque, o odiou por saber que se ele precisasse fazer uma escolha naquele momento, ela teria perdido sem pensar duas vezes.

Se Agatha tivesse morrido não existiria disputa. Ainda seria um jogo injusto, teria que competir com todas as memórias do fantasmas de um amor que durou três e uma vida inteira, mas os últimos anos tinham sido sobre isso, sobre enfrentar o amor dele pela morta, então era um campo que já conhecia. Percebeu tarde demais que competir com memórias era difícil, competir com a coisa real era quase impossível.

Se a cama e a mesa vazias eram um indicativo de cada batalha perdida, ela vinha perdendo consecutivamente nos últimos dias e parecia uma questão de tempo até perder a guerra.

Nos últimos dias era como assistir uma tragédia se desenrolando e as vezes ela simplesmente não conseguia lembrar como se mover e nem era totalmente a sua culpa, ficar estagnado diante do caos era mais normal do que parecia, existia algo atordoador sobre catástrofes, sobre o momento em que algo está desabando e ruindo, era exatamente como assistir um prédio ruindo, não há muito tempo para pensar sobre o que está acontecendo, então o corpo acaba estagnando, como se acontecesse uma falha entre os olhos, o cérebro e o restante do sistema de autopreservação do corpo, ela podia entrar em pânico ou... só ficar e observar. E ela fez isso, ela ficou lá uma semana atrás no meio da sala observando o casamento desabar quando Agatha entrou pela porta, a sensação de que algo frio estava perfurando a sua coluna e dilacerando toda sua espinha, ficou parada assistindo o seu mundo e o mundo dos outros desabando. Durou apenas alguns minutos até ela entrar em pânico, dirigir até o bar e ameaçar Nice com toda sinceridade e ódio que conseguiu exprimir.

wicked game - antoreneOnde histórias criam vida. Descubra agora