Se a casa vazia alguns dias atrás estava sendo um problema, aquela noite ouvir os barulhos e as vozes no andar debaixo estava sendo um pesadelo. Levantar e sair da mesa de jantar só iria parecer uma péssima ideia daqui algumas horas, agora ela estava com raiva, queimando, derretendo ossos e pele de raiva, uma figura feia e corroída por inteiro. Se quebrasse o quarto inteiro eles acabariam ouvindo no andar debaixo, então ela absorveu o ódio até estar cheia dele e implodiu, todos os órgãos se apertando e derretendo dentro de si enquanto a raiva subia por eles como ácido.
Apoiou as mãos na penteadeira e deixou a raiva lhe comer inteira, devorar os ossos, queimar seu peito, seu pulmão, sua garganta, suas amídalas, sua língua, subir por sua garganta e então tudo aquietou devagar. A voz na sua cabeça dizendo destrua alguma coisa, além, antes que a raiva possa destruir você, simplesmente desapareceu, tão rápido quanto chegou, depois seus órgãos estavam bem novamente, seu coração batendo, seus pulmões funcionando. Ela queria gritar e apontar para Agatha e perguntar se era a única lúcida naquela maldita casa, queria perguntar se todos os outros estavam bêbados pelo fascínio do absurdo que era ela estar viva, se ninguém mais percebia que alguma doentia cheirava no ar e que dessa vez não era ela.
A lucidez estava lhe deixando louca? Porque não era possível...
Era aquela família que ele queria. Agatha e dois filhos, era essa família bonita e imaculada que ele queria. Ela e os dois filhos, que em um mundo em que ele pudesse controlar seriam filhos dele e da outra, jantando em uma noite qualquer, jogando elogios e assunto fora, falando sobre tempero e sobre a Itália, sobre trabalho, falando sobre qualquer coisa porque pareceu tão fácil conversar com ele, sem respostas imediatistas e atravessadas, sem brutalidade repentina, sem palavras ácidas, sem comentários cruéis.
Ela não sabia quem era o seu Antônio e quem era o Antônio de Agatha — honestamente ela nem sabia se existia o seu Antônio, talvez fosse o Antônio pós-Agatha e o Antônio-de-Agatha. O homem que ela conheceu nesses trintas anos nunca estava satisfeito, com a comida, com o clima, com o cheiro do café, com perfume dela, com as perguntas ou o silêncio, o homem que ela conhecia gostava de espezinhar o vício da filha no café da manhã como se fosse hobby, humilhava o filho mais velho porque precisava de alguém para descontar as frustrações, o homem que ela conhecia humilhava os empregados e matava quando necessário. O Antônio de Agatha era outra pessoa, sorria e ouvia, e chamava Petra e Caio o tempo todo de meus filhos e quando ele começava a fazer comentários e agir um pouco mais como o seu Antônio, Agatha olhava para ele então o homem mudava novamente. Ela não tinha certeza do que estava acontecendo.
As vozes na sala desapareceram por volta de uma hora e meia depois que ela saiu da mesa. Tentou não imaginar os beijinhos na bochecha de despedidas, as mãos no braço, aquela mulher beijando a testa da sua filha, pedindo para se encontrarem mais vezes, lamentando se foi um incômodo e Antônio dizendo que não, que sem problemas, que ela podia voltar mais vezes se quisesse, e talvez ele até oferecesse algo mais gentil, essa também foi sua casa.
Duas horas depois que ela saiu da mesa de jantar alguém entrou pela sua porta, não bateu, apenas entrou e quando ela ouviu simplesmente sabia que era ele.
O Antônio de algumas horas havia desaparecido, a raiva estava lá no olhar dele, queimando como um fogo baixo mas que dependendo do que ela diria poderia desaparecer ou simplesmente incendiar os dois. Aquele era o seu Antônio, com raiva.
— Gostou do jantar? — Ela não deixaria ele ter a primeira palavra ou a última.
Ele colocou as mãos no cinto, os nós dos dedos estavam brancos.
— Precisava daquela cena?
— Precisava trazer ela pra essa casa?
— Ela é mãe do Caio, do meu primogênito, ela foi minha primeira esposa.
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wicked game - antorene
FanfictionIrene observa enquanto o casamento se desfaz após a volta de Agatha. Sabendo que o pedido de divórcio é só uma questão de tempo, ela tenta encontrar uma maneira de impedir.