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collab: helonidas

O CAPÍTULO VAI PASSAR POR UMA SEGUNDA REVISÃO 

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Trinta anos atrás o que o fez sair de casa, estranhamente, foi o silêncio. O silêncio no casarão era raro, ele tinha uma criança chorando todos os dias, balbuciando palavras novas, ralando os joelhos e gritando como se o mundo tivesse culpa disso, invadindo o seu escritório com Angelina correndo logo atrás desesperada dizendo que ele não deveria interromper o papai porque ele estava trabalhando antes de arrancá-lo de lá a força. Foi isso que Agatha deixou, o silêncio da fazenda e um filho chorão e por mesmo que Angelina continuasse repetindo que eles não poderiam culpar o menino por chorar porque ele ficava muito tempo sozinho e sentia falta de alguém além dela, ele culpava — por isso e por muito mais. Caio tinha três anos, o que significava três anos de luto, de casa vazia, de olhar para foto de Agatha e esperar que a dor desaparecesse. Caio era a lembrança da sua insistência para que a esposa engravidasse e da morte dela, eles dividiam a mesma culpa. Mas a raiva pelo barulho, pelo choro alto, pelo joelho ralado e pelas invasões ao seu escritório eram quase uma distração para o silêncio sufocante daquela casa.

Ele estava no escritório, remexendo papéis até começar a remexer a dor. Não sabia exatamente como os pensamentos descarrilaram na direção de Agatha outra vez, mas era como um rio, acabava sempre desaguando no mesmo lugar, o fazendo cutucar uma ferida que não sarou e que nunca iria sarar, o fazendo largar os papéis, encostar as costas na cadeira, aproveitar que o restante do escritório estava meio mergulhado em uma penumbra e manter o foco na luz da luminária, deixando os pensamentos se espalharem pela penumbra e afundarem o escritório inteiro naquela maldita melancolia provocada pelo luto mal curado. Retirou o colar de diamantes do cofre, observou em silêncio, se lamentou por isso, por nunca poder ver Agatha novamente com eles, por nunca poder tirar uma foto em família enquanto ela usava um colar e segurava o filho chorão deles no braço.

A penumbra a sua volta cresceu e o silêncio o arrastou pelos pés sufocando naquele rio que desaguava nela e nas lembranças deles — lembranças que ele guardaria sozinho dentro do cofre.

Foi por isso que voltou ao bar da Cândida depois de mais de três anos. A cafetina o recebeu com o olhar meio entristecido depois de quase um ano sem nenhum encontro, o arrastou para uma conversa no fundo do salão cheio de luzes neons e perguntou sobre Caio com uma urgência quase materna, a urgência de quem quase foi uma mãe para Agatha e que havia sofrido a perda a sua maneira. Ele manteve o desprezo afastado da voz o quanto pode, tentando interpretar o que as pessoas esperavam ouvir de um pai, o tom menos hostil, a interpretação nunca durava muito, ele não tinha porque fingir, o garoto tinha culpa, ele também, que cada um carregasse o seu fardo.

Não tinha intenção de voltar lá, seria uma noite, uma escapulida do vazio daquela casa, dos olhos de Agatha o perseguindo na penumbra, dos seus dedos manchados de sangue por remexer aquela ferida persistentemente como se precisasse da dor da culpa para continuar sobrevivendo. Mas precisava também de uma bebida e o bar estava cheio, Cândida disse que ele poderia beber qualquer coisa, para tentar se distrair aquela noite, que ele seria bem-vindo, ele não agradeceu mas esperava que ela soubesse que ele, ou alguma coisa dentro dele que ainda capaz de sentir gratidão estava realmente grato.

O bar não havia mudado muito, conseguiu observar quando finalmente foi deixado sozinho com sua gratidão contida e seus falsos sentimentos paternalistas podendo finalmente escorregar e ir embora. As luzes ainda eram a mesma, neon forte, iluminando todo o ambiente com cores artificiais, o lugar ainda cheirava a suor e álcool e tinha certeza que o andar de cima fedia a bebida, desinfetante e sexo, as mesas estavam cheias, o cantor da noite tinha uma voz terrível e estava fazendo uma imitação de uma música que ele não conhecia em um inglês que mesmo ele que não conseguia entender a língua tinha certeza que era fuleiro. Cândida ainda era Cândida no final das contas, com a decoração exagerada, andando pelo bar com um sorriso de recepção como se ela fosse a grande anfitriã em uma festa e não uma cafetina, sorrindo para os homens mais novos, acariciando as barbas mal crescidas dos garotos mais jovens que três anos atrás imploravam por uma chance, ela havia mudado pouco, o cabelo loiro estava mais ressecado, ela usava o dobro de bordados nas roupas e estava mais expansiva e extravagante que nunca. As garotas dela ainda eram as mesmas, desde a época de Agatha, algumas haviam desaparecido, ele imaginava que ou foram dispensadas ou simplesmente foram embora, de todas as aquisições de Cândida a única que não se encaixava nas suas memórias era a garota atrás do balcão. Ela não se encaixava com nada.

wicked game - antoreneOnde histórias criam vida. Descubra agora