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Ela viu muita gente morrer mas foi a pouquíssimos enterros e todos os que precisou ir foi apenas por pura obrigação, ou porque era um antigo amigo da família — o tipo que só se lembra o nome, aparece uma vez na vida e é chamado de antigo apenas por pura casualidade — ou era alguém importante para os sócios de Antônio e então precisava acompanhá-lo, fazer o marido agir como uma pessoa sensível ou sensibilizada quando ela mesma não queria estar lá, não estava nem um pouco interessada em se compadecer com a dor alheia. Odiava velórios. Odiava o cheiro de ficava no ar — não sabia se era o cheiro dos corpos das pessoas se misturando, tocando os ombros, se consolando, misturando perfumes, o cadáver dentro do caixão, a mistura salgada de algumas lágrimas e suor ou a mistura de velas e alguns incensos —, odiava as roupas pretas, as condolências, os toques casuais no braço e a necessidade de dizer sinto muito, meus pêsames, ele era uma boa pessoa, vai ficar tudo bem, você vai ver, odiava ter que fingir que conhecia o morto a ponto de sentir muito. Odiava as cordialidades, a comida depois do velório que sempre tinha gosto de plástico e ela nunca saberia diferenciar se o que estava sendo servido era mesmo plástico ou qualquer outra porcaria que encontraram na cozinha, jogaram no prato e empurraram para as pessoas, a tensão mórbida, odiava os rostos pálidos, a necessidade de ter que fingir que estava de fato afetada com tudo aquilo quando na maioria das vezes ela realmente não se importava nem um pouco.

Ela sempre lidou com a morte muito bem, nunca tinha sofrido uma perda devastadora, então era fácil. Precisava pensar na morte como algo simples: o coração para de bater, as terminações cerebrais se desligam, a vida para de fluir no corpo, o sangue para de correr e em algum momento se coagula nas veias, o cadáver fica horrível, é enterrado, as pessoas se juntam, comem, lamentam, contam memórias e dependendo de quem era o morto elas fingem lamentar, fingem que as histórias eram divertidas, pintam um quadro mais bonito assim como os profissionais do necrotério pintaram o defunto, o luto levava alguns dias, as vezes semanas e pronto, tudo estava bem de novo, ninguém sofre para sempre com a dor de uma morte.

Mas então Daniel morreu e as coisas não eram mais tão simples.

Quando Daniel morreu ela quis que todos sentissem, quis que todos fossem naquele maldito velório e sentissem a dor que ela estava sentindo e sufocassem como ela estava sufocando e, se pudessem, morressem também.

Daniel morreu e o mundo continuou a ser mundo e fora da mansão tudo continuou sendo exatamente como sempre foi, ela queria destruir tudo. Daniel não tinha importância para o mundo, mas tinha importância no seu mundo e isso era suficiente para deixá-la irritada todas as vezes que via as pessoas apenas vivendo, alheias a tudo que ela perdeu, o mundo inteiro deveria sofrer junto com ela, deveria sentir o quanto era insuportável, queria fazê-los sentir do mesmo jeito que estava sentindo, queria que fosse insuportável para o restante da humanidade, pelo menos para aquela cidade inteira. O velório tinha pessoas mais próximas e alguns indesejados e sabia exatamente o que aquelas pessoas estavam pensando, o quanto elas era completamente indiferentes a sua dor, sabia que as palavras delas eram pura cordialidade porque ela foi como eles, sabia o que se passava na cabeça deles, a vontade de que aquilo acabasse logo porque todos tinham coisas mais importantes do que lamentar por um morto com quem não tinha nenhuma ligação direta.

Passou o velório todo apática quando queria gritar, mesmo quando queria agarrar Caio pela gola da camisa e bater nele até que ele sentisse a dor na mesma profundidade ela permaneceu letárgica. Ela tinha ódio o suficiente para queimar o mundo, mas não tinha forças para isso.

Daniel foi sepultado em uma sexta-feira. A sexta-feira mais silenciosa de toda sua vida. Se existia alguma coisa boa dentro dela foi enterrada junto com a oração do padre ao pé do túmulo naquela sexta-feira silenciosa. Ela continuou voltando para o cemitério pelo menos duas vezes no mês, tentando reencontrar aquela parte de si que estava faltando, mas o vazio ficava mais profundo, mais denso, mais escuro. Precisava de algo para preencher aquele vazio, escolheu o ódio.

wicked game - antoreneOnde histórias criam vida. Descubra agora