Sem Nenhum Motivo [II]

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"And if I break, could I go on break? Be back in my room, writing speaches in my head?"
~ When the memories show - Mitski

[●○•★•○●]

Alguns dias antes da cirurgia, Fyodor deixou tudo arrumado para que Nikolai não queimasse a casa, que eles dividiam, enquanto estivesse fora. O bobo-da-corte se mantia ignorante, fingindo não se incomodar quando o assassino sumia ou ficava horas trancado no banheiro.

Fyodor já não tinha mais onde esconder os buques de Jacintos. Eles preenchiam os lixos, armários e gavetas da casa. Nikolai fingia não saber de nada.

Tudo mudou em uma manhã inesperadamente fria.

A cirurgia aconteceria no dia seguinte, por tanto, foi recomendado que Fyodor passasse as cinco horas antes sem se alimentar. Nikolai, como o ótimo melhor amigo que ele dizia ser, resolveu fazer um banquete para Fyodor antes que as cinco horas começassem.

— Fiz especialmente para você, meu melhor amigo de todos os tempos! — O bobo-da-corte apontou para mesa cheia de doces com orgulho. — Bom, na verdade, Sigma comprou para mim quando eu o ameacei, mas podemos relevar essa parte!

Ele se sentou na frente de Fyodor, na outra ponta da longa mesa da sala de jantar. O assassino sorriu e se pôs a rezar pelo alimento, ignorando o olhar fuzilante de Nikolai, que revirava os olhos, entediado.

— Vamos comer! — Ele anunciou calmamente, se servindo uma pequena xícara de chá.

Os dois se serviram em silêncio, já tinham conversado o suficiente aquela manhã. Nikolai sorriu para Fyodor, que sentiu seu coração apertar e rezou para que as flores não surgissem novamente. O russo sorriu de volta, mas desviou o olhar antes que sentisse algo mais profundo.

— Dostoy... Você está apaixonado? — Nikolai perguntou vagamente, se servindo um pedaço de bolo. — Faz séculos que não te vejo sorrir assim... eu não pensei que você conseguisse amar alguém. — Seu sorriso se tornou algo mais amedrontador. — Faz quanto tempo que você está mentindo para mim?

O bobo-da-corte deixou escapar uma risada irritada, as flores de Fyodor voltaram a incomodar. Seu coração acelerou, não pela paixão que sentia, mas por puro medo.

Fyodor nunca pensou que algum dia sentiria medo de algo, não depois de tudo que passou.

A realidade caiu sobre ele como um piano cai do quarto andar, fazendo barulho e chamando a atenção alheia. Ele estava com medo, medo de morrer, medo de sentir e medo de deixar de sentir... mas ele sabia que aquilo era necessário, ele sabia que, no fundo, aquilo era o que ele merecia por ter pecado contra seu Deus.

Ele procurou por um lenço na mesa, mas Nikolai havia os escondido propositalmente, como uma experiência nova. Com o desespero crescendo em seu peito e um Jacinto crescendo em sua garganta, Fyodor tentou tossir as plantas em sua própia mão, sendo impedido quando Nikolai segurou seu pulso.

Ele não tinha percebido o momento que Nikolai saiu de sua cadeira e foi até ele, mas ele já sentia o gosto amargo da flor em sua boca. O bobo-da-corte segurou sua mandíbula para manter sua boca aberta e simplesmente puxou o Jacinto da garganta de Fyodor.

Geralmente, Fyodor tossia apenas os Bulbos (pequenas florzinhas) da planta, era a primeira vez que um Jacinto inteiro saia de seu pulmão. Ele pode sentir o caule da flor deslizar para fora de sua garganta em uma agonia interminável, o gosto penetrava sua boca como navalhas. Nikolai finalmente tirou a flor pela raiz, sorrindo ao fazê-lo.

— Eu realmente não esperava isso de você! — Ele riu sozinho enquanto Fyodor procurava pela xícara de chá com as mãos tremulas. — Você precisa me ensinar esse truque de tirar flores da boca, mesmo que eu considere ele meio estúpido...

Fyodor derrubou a xícara sem ao menos conseguir pegá-la em suas mãos. A porcelana fina quebrou em vários pedaços ao se estilhaçar no chão. Nikolai se sentou na mesa entre os dois, girando o pequeno ramo em sua mão e admirando o sangue de Fyodor, que manchava a flor e sua luva, mesmo que ela ja fosse vermelha.

— Me diga quem — Nikolai não estava pedindo. Seu sorriso era doentio. — Me diga quem te deixou assim e eu matarei o filho da puta, com doze tiros contados! Você só precisa me dizer quem!

Fyodor não respondeu, sua garganta ainda doía. Era óbvio que ele não iria contar nada a Nikolai, mas isso não parecia tão óbvio aos olhos do bobo-da-corte.

— Não vai me contar? — Ele perguntou, ainda insistente. — Eu tenho todo o tempo do mundo, você não parece ter metade disso...

O assassino encarou o olho pálido do acrobata, mas se manteve em silêncio.

Fyodor estava cansado, muito cansado. Ele debruçou contra a mesa e fez como se estivesse rezando.

— Olhe para trás... — Ele pediu, com a voz rouca e sem vida.

Nikolai se virou com rapidez, rindo quando viu a moldura preta e desgastada de um espelho de corpo, que mostrava um assassino e um palhaço, lado a lado.

— Que piada de mal gosto, Dostoy! — Ele xingou, mas Fyodor não respondeu, apenas continuou rezando.

Nikolai olhou para a moldura denovo. Talvez esse fosse mais um dos jogos de Dostoy, como ele pensava. Ele levantou da mesa e encarou a si mesmo no espelho.

Ele se viu no reflexo. Isso foi o suficiente para que ele entendesse.

Nikolai se virou para Fyodor, com nojo.

— Você está falando sério agora? — Ele riu, mas evitou se aproximar, como se a doença fosse contagiosa. Ele riu de quão miserável Fyodor parecia enquanto rezava, seu rosto escondido pelos cabelos. — Você realment–

— Vá embora — Fyodor mandou, com sua voz rouca.

Nikolai feanziu o cenho, com raiva.

— O qu‐...?! — Ele foi interrompido.

— Essa é a minha casa e eu estou te dispensando. — Uma tosse rouca o obrigou a parar antes de continuar o pedido. — Você não é meu amado, muito menos meu amigo. Você é simplesmente alguém que trabalha pra mim, um mero funcionário. Por tanto, você está dispensado.

Nikolai deixou um som parecido com um lamento sair de sua boca. Ele não esperava que Fyodor fosse reagir tão mal, mas também sentia raiva, nojo, repulsa...

Fyodor revelou ser tudo aquilo que, um dia, ensinou Nikolai a odiar.

Ele subiu em cima da mesa e andou em direção a saída, chutando os doces e bolos que ele tinha  preparado com tanto carinho para Fyodor. Antes de sair da mesa em com um salto, ele se abaixou para pegar um pedaço de bolo com as mãos e o jogou em Fyodor, atingindo seu cabelo, que ainda escondia seu rosto.

Assim que ouviu Nikolai sair da casa, Fyodor levantou a cabeça, se vendo no espelho da sala de jantar. Ele viu sua boca manchada de sangue e pétalas roxas. Ele viu o que sempre tentou esconder de si mesmo.

Ele nunca admitiu que amava Nikolai. Aquilo não era certo a seus olhos. Como dizia a bíblia, ele pensava nisso toda vez que fantasiava sobre Nikolai.

Ele nunca se odiou tanto, nunca sentiu tanta repulsa de si mesmo, nunca quis tanto morrer quanto ele queria naquela tarde.

Poderia parecer algo insignificante, mas, para Fyodor, foi como descobrir que tudo que ele viveu durante toda sua vida fosse uma grande mentira.

A Bíblia era uma mentira. Seu amor era uma mentira. Sua liberdade era uma mentira. Sua pele era uma mentira. Seus olhos cansados eram uma mentira. As flores roxas eram uma mentira...

Algo que ele percebeu com o canto dos olhos o fez ficar sem ar. Um pequeno Jacinto, amassado pelo sapato de Nikolai, se encontrava perto do batente da porta.

Hanahaki | FyoLai [Por Favor, Me Perdoe]Onde histórias criam vida. Descubra agora