Choque de Realidade

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— Heyyyyy moça não pode estacionar aí!

Mal saio do carro e escuto uma voz irritante vindo não sei de onde, porém finjo que não é comigo e aciono o alarme do veículo.

— Aí é calçada de passagem de pedestre, não pode estacionar.

Que saco! — praguejo mentalmente enquanto caminho e revirando minha bolsa junto, para tentar ignorar a voz irritante novamente.

Porém, ao chegar perto da porta automática de vidro da conveniência, uma garota perto dos seus 22 anos entra na frente cortando meu caminho.

De pele morena e cabelos negros cacheados, numa fisionomia bem irritada volta a questionar. — A senhora escutou o que eu estou falando?

— Escutei!!! — respondo sem a menor paciência — Estou com pressa e só vou comprar algumas coisas...será rápido.

— E você acha que a "sua pressa" é tão importante a ponto de prejudicar as outras pessoas?

— Não prejudique ninguém, é só você dar a volta por trás do carro.

— Essa calçada não tem rampa de acesso para cadeirante! — a garota emenda logo em seguida.

— E a culpa disso é minha? Vai cobrar o prefeito. — respondo com desdém sem entender o que a rampa tem a ver com carro estacionado.

— Se você tivesse empatia, poderia estacionar o seu carro mais para a frente — a garota achou uma solução rápida o que me deixou mais irritada.

— Eu não vou estacionar lá na esquina, e andar tudo isso até aqui — digo indignada.

— Vejo que a senhora realmente não entende nada de empatia — o tom sarcástico da morena acabou com o resto da paciência que eu já não tinha.

— Ah não enche o saco, garota! — Dou as costas entrando enfim na conveniência.

Que menina chata, credo! — Pego uma cesta de compra disponível na entrada do estabelecimento e vou ao primeiro corredor.

Hummm...integral ou sete grãos? — fico um tempo analisando em dúvida quais dos dois produtos vou levar, quanto uma movimentação além da vitrine chama minha atenção.

Olho em direção do meu veículo estacionado e logo atrás a mesma garota que eu estava discutindo a pouco, empurrava uma cadeira de roda com um senhor na casa dos 90 anos em cima.

Ela estava com muitas dificuldades, pois as rodas direitas desceram o degrau da guia alta e as rodas esquerdas ficaram pendentes e meia torta, inclinando perigosamente o assento.

Um choque de realidade bateu na minha cara com força que me fez ficar momentaneamente estática antes de jogar a cesta de compras no chão e sair correndo para fora da conveniência.

Meu gesto brusco chamou a atenção dos demais que foram para a vitrine saber o que estava acontecendo.

A cadeira de rodas com o senhor pendeu mais um pouco e ela iria virar se não fosse eu conseguir chegar a tempo, praticamente jogando meu corpo que serviu de apoio estabilizando a cadeira novamente.

A garota levou um susto, não sei se por quase a cadeira ter virado com o idoso ou de eu ter chegado tão de repente.

— Me desculpe...por favor...me desculpe. — foi a única coisa que consegui dizer diante da minha vergonha.

— Está tudo bem. — a garota diz numa voz cansada de alguém que já passou muitas vezes por essa situação.

— Não...não está...se eu soubesse que você estava com um cadeirante, eu não teria parado aqui.

— "Aqui..." — a garota fala com ênfase apontando o dedo indicador para meu carro — ...não pode estacionar, é calçada de passagem de pedestres independente se tem no momento um cadeirante ou não.

Minha garganta deu um nó e minha vergonha ficou ainda maior. — Eu agora consegui entender...nunca mais farei isso de novo.

A garota me olhou com uma expressão mais suavizada, com a certeza que conseguiu fazer mais uma pessoa compreender além de si mesmo.

— Obrigada. — ela disse por fim indo embora empurrando a cadeira de rodas.

Entrei no meu carro para tirá-lo imediatamente de cima da calçada, depois que dobrei a esquina lembrei que não fiz minha compra para o café da tarde da reunião da Vizinhança Solidária de logo mais.

Eu como presidente do grupo não poderia me atrasar, só que olhando para o relógio do painel percebi que já estava muito atrasada e resolvi seguir direto até o salão paroquial que seria o encontro.

— Julieta, você não trouxe nada para o café da tarde? — Eliana me perguntou assim que pisei no salão.

— Eu tive um contratempo. — disse pensativa.

— Tudo bem, vamos que estão todos te esperando.

No salão paroquial as cadeiras de plásticos estavam dispostas em fileiras e logo a frente duas mesas que foram juntadas, ficavam os membros da ouvidoria e presidência do grupo, assim que sentei no meio deles a reunião começou.

A pauta era o programa "De Bairro a Bairro" lançado pelo governo da cidade que trás o prefeito e seus secretários nos bairros para ouvirem os pedidos e reivindicações dos moradores, semana que vem era o bairro deles a ser visitado, então a reunião foi marcada para decidir o que seria pedido aos governantes.

— Trocar as árvores da praça por outras mais floridas — disse um.

— Precisamos de lâmpadas led para deixar o bairro mais bonito — uma outra dá sua sugestão.

— Rampa de acesso — eu digo reflexiva.

— Como? — Eliana sentada ao meu lado não tinha entendido.

— Rampas...rampas de acesso — falo num tom mais alto chamando a atenção dos demais — Nosso bairro não tem rampas de acesso nas esquinas para cadeirantes e pessoas com baixa mobilidade...acho que devemos fazer esse pedido aos governantes.

O burburinho foi geral até uma voz vir mais ao fundo do salão. — Mas não temos cadeirantes no bairro para precisar de rampas.

— Não precisa ter para sentir empatia com quem necessita.

Por: Juh Romano.

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