QUATRO

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                            04

DO CADERNO DE WANG YIBO

Ombros.
Esse foi meu primeiro pensamento assim que o vi.
O tipo de ombros que podiam apagar o sol, ombros que testavam as costuras de seu hábito de monge (que é uma vestimenta feita propositalmente para ser solta e sem forma, então isso é... alguma coisa).
Quatro anos de mudanças, e foram seus ombros que notei primeiro. Mas também houve outras mudanças. Uma  mandíbula marcante, calosidades em suas mãos grandes. E mesmo que aqueles olhos negros ainda fizessem meu coração acelerar, eles não brilhavam mais com malícia e alegria infantil, mas com algo... Não sei, solene parece a palavra errada. Secreto, talvez.
E o silêncio dele, quieto como eu nunca tinha visto Xiao Zhan  . Ele ouviu cada palavra que falei como se eu estivesse proferindo uma profecia, e quando olhou para mim e não para suas mãos, seu olhar estava intensamente presente. Como se ele inteiro estivesse ali comigo, tão ali, como se sua vida tivesse existido apenas para me olhar por trinta minutos em um claustro.
Aquela parte... que é como o antigo Xiao Zhan , mas também não é, não com a quietude o acompanhando.
Por que não consigo parar de pensar em como ele estava quieto?
Por que não consigo parar de pensar em seus ombros?
Eu fiz o que fui fazer lá. Contei-lhe sobre Jamie, sobre o casamento, instiguei com sucesso o encerramento.
Nada parece finalizado
Por que não consigo parar de pensar sobre ele.

(....)

         Xiao Zhan

Não sei como volto para o eremitério. Sei que volto porque estou aqui no fino tapete de segunda mão que cobre a maior parte do piso de concreto rachado. E sei que deve ter chovido todos os três quilômetros de volta, porque os papéis que o abade me deu estão molhados e moles em minhas mãos.
Sei que ainda estou vivo porque sinto meu coração batendo forte dentro das minhas costelas. Porque estou chorando e as lágrimas escorrem quentes pelo meu rosto gelado e molhado de chuva.
Estou ajoelhado enquanto a chuva ruge ao redor do casebre de pedra calcária, enquanto tamborila feito louca no telhado e chicoteia contra as janelas. Não vejo nada do mundo em que estou, nada além de fibras de tapete gastas e a foto agora ondulada de St. Columba e seu mar escuro e implacável.
Não vejo nada além de Yibo em minha mente.

Ele vai se casar. Ele vai se casar e não é comigo.
Eu te amei por muito tempo depois que você partiu.
E eu ainda o amo.
Eu ainda o amo.

O barulho sai de mim como um trovão - um rolo lento, cada vez mais alto até que está sobre mim e estou gemendo, estou chorando enquanto cambaleio para ficar de pé e através da porta para a clareira, chorando de volta para o trovão e para o deus que o enviou.
Caio de joelhos de novo, tremendo com a necessidade de... nem sei. De correr, talvez. Correr por entre as árvores até chegar ao topo da enorme colina de calcário acima da abadia e então ficar lá até que um raio queime minha carne estúpida e miserável. Correr até o oceano e depois nadar até o santuário de St. Columba.
Correr para a rodovia e pegar uma carona para Kansas City e cair aos pés de Yibo e implorar por perdão.
Curvo-me para frente, a garganta doendo, os lados do meu corpo arfando. A chuva continua caindo sem se importar com minha raiva ou dor, o trovão retumba e continua, como sinos de igreja soando na pradaria, convocando cada pessoa que pode ouvir para este antigo ritual do céu encontrando a terra.
Fico olhando para minhas mãos na lama, para a grama rasgada entre elas.

— Eu o amo tanto, — sussurro, a chuva escorrendo da minha cabeça e descendo para os meus lábios, onde as gotas caem junto com minhas palavras na lama e na grama abaixo. — E dói e quero que pare. Por favor, Senhor. Se você me ama, faça isso parar.
Não há resposta de Deus, nenhum presságio doce ou pungente que eu possa tomar como um sinal. Nenhum raio de sol, nenhum canto de pássaros. Nada além de lama, trovões e um céu cinzento. Tão cinzento que pode ser que haja alertas mais tarde e quase desejo que eles aconteçam. Quase desejo que uma tempestade me leve para longe.
Levanto meus olhos para as colinas.
Fecho meus olhos e espero.

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