DEZENOVE

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      Três semanas depois

— Está levando bastantes meias? — Irmão Connor pergunta. — Pode ser que você precise de mais.

— Tenho certeza de que terão um jeito para eu lavar roupa, — digo, juntando-me a ele para olhar para minha mala emprestada. Atualmente é a mala mais enfadonha que a humanidade conhece - meias pretas, cuecas boxer pretas, hábitos pretos e escapulários. Meu breviário, o exemplar da Summa Theologiae que Peng me deu no Natal do ano passado. Artigos de higiene. Remédios para a cabeça. Passaporte.
Tudo está pronto para eu ir amanhã. E estou pronto há tanto tempo que iria para o aeroporto agora, se me deixassem.
O abade disse que eu poderia ir, desde que usasse a viagem para avaliar o que queria da vida monástica, e disselhe que faria isso..., mas já sei que não preciso. E estou ansioso para provar a ele que esta é a vida que devo viver, que fui chamado para ser um monge, com celibato e tudo.
Uma batida na porta aberta anuncia o abade, que se junta a mim e ao irmão Connor na cela agora lotada depois que o recebo. Ele se aproxima de nós em volta da minha cama, onde estamos olhando para minha mala.

— Não acha que precisa de mais meias? — O abade pergunta, e o irmão Connor balança a cabeça.
— Ele não quer ouvir.

Eu bufo, mas não me preocupo em responder porque o irmão Connor e o abade estão trocando um olhar que conheço bem. É um olhar pré-Conversa. O medo, pequeno, mas cortante, penetra em meu estômago.

— Vejo você amanhã de manhã, irmão Sean, — diz o irmão Connor e me dá um sorriso afetuoso. É um sorriso de boa sorte, e o pavor afunda ainda mais em meus lugares vitais.
Viro-me para o abade, que está sentado na cama estreita ao lado da minha mala, com as mãos cruzadas sobre a barriga.
— Tenho algumas novidades, — ele diz, e sei, só sei, que ele está prestes a me dizer que a viagem foi cancelada. Que os mosteiros da Europa mudaram de ideia sobre minha visita, que não me querem mais. Que não vou ficar nas falésias de St. Columba, afinal, e que o lugar sagrado que tenho procurado permanecerá para sempre fora do meu alcance.
Sento-me lentamente na cadeira ao lado da minha mesa, preparando-me para receber esta notícia com humildade e graça. Ou pelo menos a ausência de um grito estrondoso e estridente.
Posso sobreviver a qualquer coisa, menos a isso, quero dizer ao abade. Eu sobrevivi à morte do meu irmão por suicídio, à morte de minha mãe por câncer - até sobrevivi àquela escuridão escorrendo e pegajosa que queria tanto me engolir inteiro.
Sobrevivi deixando Yibo  e sobrevivi queimando minha vida inteira como uma oferta a Deus.
Mas não posso sobreviver a isso sendo tirado de mim, simplesmente não posso. Vou definhar como um rio no deserto. Vou voar no vento como a poeira na seca.

— Sr. Wang pediu para acompanhá-lo na viagem, — diz o abade, e estou feliz por já estar sentado, porque não sei se seria capaz de ficar de pé.

Tanto pelo alívio da viagem não ter sido cancelada quanto pelo choque absoluto e sem filtro.
— Yibo ? — Pergunto, incapaz de modular o quanto pareço atordoado.
— Na minha viagem?

— Sim, — responde o abade, olhando-me por baixo de suas sobrancelhas formidáveis. — Mais pesquisas para seu artigo. Ele pediu na semana passada e eu o informei que precisaria da permissão dos abades dos mosteiros anfitriões antes de discutirmos a possibilidade. Mas, nesta tarde, ouvi todos os abades, e todos consentiram alegremente em hospedá-lo também.

Ele pediu na semana passada.
Então, depois do beijo - depois que Jamie ligou e depois que deixou a abadia mais cedo – ele quer ir comigo para a Europa.

Ele quer ir comigo para a Europa.
E oh, a emoção eletrifica a minha pele com isso. Não só com a perspectiva de vê-lo, mas com a perspectiva de ele me procurar, mesmo que seja apenas para pesquisar.
Mas a emoção é seguida imediatamente pelo pânico. Por uma espécie de culpa preventiva.

Quero dizer ao abade que é impossível. Que não posso fazer isso, porque a lembrança das gotas de chuva acumuladas no lábio superior dele ainda me persegue.
Olho para o meu colo.
—  Deus não deve me testar além do que posso suportar, — digo. — E nem o senhor.

— Está além do que você pode suportar, irmão Sean? — O abade pergunta com calma.

Murmuro um — Não sei.
— Porque, — diz o abade, — a escolha é sua. Se me disser que não quer isso, que não pode suportar, direi ao Sr.Wang que ele não pode ir.
Ainda olhando para baixo, penso no eremitério. Lembro do trovão, dos seus lábios contra meus lábios, nas mãos deslizando sobre minha pele como se nunca houvesse o bastante de mim para tocar.
E então penso em incenso e salmos e Cristo me olhando com as pálpebras pesadas da cruz. Penso em vagalumes no claustro.

Não, uma voz teimosa dentro de mim insiste. Você levou esse tempo todo aprendendo a fazer uma promessa e vai cumpri-la, caramba.
Sei que viver esta vida é o que devo fazer. Só preciso assegurar que o abade também saiba.
E quem sabe... quem sabe esta seja uma oportunidade. Uma oportunidade envolta em tentação, mas uma oportunidade. Quem sabe se eu fizer esta viagem com Yibo  e não acontecer mais, digamos, incidentes, então posso provar ao abade que aceitei o convite de Deus para explorar o que quero - e farei isso com o desejo do meu coração terreno em mãos.
Serei capaz de provar que estou pronto para os votos solenes e que estou pronto para uma vida inteira deles.

— Eu posso fazer isso, — ouço-me dizer antes mesmo de terminar de formar o plano em minha mente. Olho para o abade.
— Ele é bem-vindo. Por causa de seu artigo e de tudo.

O abade Jerome me estuda. Não de uma forma rude, mas de uma forma penetrante que ainda é um pouco desconfortável.

— Acho que você se lembra de que fiquei muito animado com este artigo, — diz ele após um minuto.
— Mas nenhum artigo é mais importante para mim do que você. Preocupo-me muito com você, irmão Sean. Quero que isso seja sua escolha.

— Obrigado, — eu digo.

Minha mente agora está decidida. Talvez este seja o Impulsivo Xiao Zhan  levantando a cabeça mais uma vez, mas sei que esta é a maneira de provar a todos, inclusive a mim, que fui feito para ser um monge.

— Quero que ele vá. E vai ser bom para mim.

E assim será. Mesmo que isso signifique que preciso enfiar minha gaiola na minha mala para ter mais certeza de que tudo ficará bem.
A recompensa será ainda mais doce por seu nascimento difícil.

Eu saberei com absoluta certeza de que estou fazendo o que é certo.

(.....)

Santo DesejoOnde histórias criam vida. Descubra agora