Passos suaves

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        Gabriele sonhou com um rosto desfocado. O vulto tinha cabelos cacheados e madeixas negras como a meia-noite, porém sem o tênue salpico das estrelas. Uma pele clara, com uma pequena cicatriz no queixo, que seguia numa linha diagonal até a área logo ao lado dos lábios. 

        Ela acordou suando frio. 

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        - Bom dia. - Gabriele sorriu prontamente para Richard quando ele entrou no bar. Ela estava sentada em uma das mesas arranhadas, com uma jaqueta* cinzenta e uma saia da mesma cor. Na sua frente estava uma caneca de chá e um muffin que exalava um cheiro adocicado de cranberry com canela.

         - Está acordada muito cedo. - Ele franziu a testa de leve. Gabriele normalmente dormia até mais tarde em dias nos quais não possuía uma tarefa específica. Obviamente, eles tinham uma missão, mas mesmo assim ainda era cedo demais.  - Está... preocupada?

         Ele mediu tão cuidadosamente as palavras que Gabriele reprimiu um suspiro. Ela não queria falar sobre isso. Mesmo que a perseguisse. Até mesmo nos sonhos. 

Fora a segunda vez só naquela semana. O rosto dele, que ela não conseguia esquecer de forma alguma.

Yago.

         Gabriele queria estapear-se por pensar nele dessa forma. Era melhor manter seus pensamentos longe. Quanto mais longe melhor.

          - Não. - A resposta foi tão curta e seca que ela viu Richard encolher os ombros.  - Quando vamos para a casa de Vossa Graça?** 

         O título foi dito mais por zombaria do que por respeito, contudo ela pouco se importava. Alguém que fazia o que ele fazia sequer merecia títulos.  

          - Quando preferir. Pode ser em poucos minutos ou algumas horas, como achar melhor.  

          - Só preciso concluir o café da manhã. - Ela disse, bebericando o conteúdo da caneca e dando uma mordida rápida no muffin. - Quanto tempo?

          - 10 minutos a pé, 6 de carruagem. 

          - Não me importo de ir a pé. - Ela comeu o que restava do muffin e virou a caneca rapidamente, limpando os lábios com o dorso da mão.

          Bom, não se espera de uma ladra uma etiqueta perfeita.

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          O barulho da cidade variava, podendo se manifestar de pequenos sussurros até o guincho estridente das rodas dos automóveis. Pelo horário, ainda estava calmo; em breve viriam as muitas pessoas, enchendo tudo com seus burburinhos clássicos e previsíveis.

          As roupas de ambos eram propositalmente de cores nulas, que se mesclavam facilmente em muitas paisagens diferentes. Boas para se esconder, sorrateiras na medida certa.

          A casa do duque ficava num terreno afastado da cidade, depois de uma estrada deserta e verdejante. Era uma mansão branca e imponente, com incontáveis janelas. Uma visão grandiosa vista de longe.

          Glanancy.

          Era um nome demasiado comum para uma propriedade, talvez até ultrapassado. Gabriele não pensou muito nisso. O jardim era tomado por moitas rasteiras, o que não facilitava em nada, já que eles tinham que se arrastar como insetos se não quisessem ser vistos. Em alguns minutos, os trajes de ambos estavam repletos de grama.

          - Não falta muito até chegarmos lá. Se lembra do plano? 

          Ela assentiu veementemente. No caminho, ela e Richard haviam combinado um plano para o roubo em questão. Os relógios que pretendiam furtar ficavam á mostra numa vitrine de vidro no hall principal da mansão, onde o Duque Twivyll de Glanancy poderia se gabar mostrando-os para as visitas.

          E, é claro, aumentar seu ego.

          Gabriele suspirou com o pensamento em questão. Richard havia lhe contado alguns relatos enquanto caminhavam. Ele havia espancado um criado de 11 anos depois que ele servira para um convidado um copo turvo.  A esposa dele estava morta, nos tempos em que ela estava viva, ele sempre batia nela quando bêbado, e com o filho não era diferente.

          Aqueles pensamentos deixavam o estômago de Gabriele retorcido de repulsa. Ela adoraria devolver na mesma moeda para o Duque o que ele fazia, mas não podia, não por enquanto. O pensamento a fazia se sentir impotente, com as mãos atadas.

          Ela roubaria aqueles malditos relógios com prazer. E, quem sabe, algum dia, uma adaga de platina cortasse acidentalmente o pescoço pálido de um certo Conde Twivyll de Glanancy.

          Quando chegaram mais perto, se encolheram para ficar logo abaixo das janelas do andar térreo, de forma que ficassem posicionados num ponto cego.

           - Entramos pela janela. Eu entro e vou para o hall principal. Você vigia. - Richard sussurrou, a voz levemente encoberta pelo vento. - Acha que consegue ficar escondida ali?

          Ele apontou para um ponto próximo a um armário, e Gabriele assentiu. Não era muito confortável, mas dava uma visão ampla de muitos pontos do corredor. 

          Para uma casa tão grande, quase não há barulho, ela pensou consigo mesma. Era um fato visível. A maior parte dos ruídos vinha das plantas do jardim farfalhando; fora isso, tudo que se escutava eram os sons dos muitos móveis de madeira estalando ocasionalmente. Não se ouviam os passos apressados de criados ou os gritos da governanta ou quaisquer outros barulhos comuns numa mansão como essa. 

          Richard ajudou-a a escalar a janela e pular para dentro do local, e Gabriele perdeu o fôlego com a visão da casa. Era absurdamente linda, ainda mais do que quando vista por fora, o que ela cogitara ser impossível. Cada coisa exibia um brilho reluzente e era cheia de dourado e branco, geralmente em forma de mármore. 

          As mãos de Gabriele estavam formigando para roubar alguma coisa, qualquer coisa; quem sabe tudo. 

           - Não devo demorar mais que alguns minutos. - Richard sumiu pelo corredor, virando a curva pela direita, seus passos se extinguindo conforme se afastava.

           Gabriele se encolheu no pequeno espaço, não sem antes agarrar um anel dourado com bonitos entalhes que ela acreditava serem em italiano ou alguma língua similar. Fosse qual fosse, o objeto era uma das joias mais lindas que ela já havia visto. Ela a guardou no bolso rapidamente.

            Com o tempo, ela noticiou que haviam sim barulhos na casa, mas eram tão baixos que você precisava de concentração para escutar. Os passos dos empregados eram quase como plumas batendo no piso.

            Ela logo entendeu o porquê de tamanho silêncio. O conde muito provavelmente estava dormindo, e nenhum deles era louco o suficiente para correr o risco de acordá-lo, principalmente com o histórico dele.

             Os ouvidos aguçados de Gabriele perceberam os poucos sons que ainda restavam, mas a maior parte dos passos estava longe demais para parecerem um perigo em potencial. 

             Até que ela ouviu os gritos. 

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*A 'jaqueta' da qual me refiro é a jaqueta feminina usada tradicionalmente na década de 1880, que você pode já ter visto em filmes. Se não sabe qual é, sugiro que pesquise.

**Título usado para se referir a um duque nesse período.

A trama das máscarasOnde histórias criam vida. Descubra agora