Lembranças empoeiradas

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A caixa do vestido era vermelho-bordô.
A embalagem da máscara era um papel fino como seda, enrolado em tiras para proteger o objeto. Gabriele desenrolou-as pouco a pouco, de forma a revelar lentamente o material escondido ali dentro.
Céus, é lindo, foi o que ela pensou ao ver o adereço.
A máscara era dourada, com detalhes e babados da mesma cor nas bordas. Era como se reluzisse, alcançando diferentes matizes dependendo da forma que a segurava.
Era quase risível, não era? A vice-líder da AILF estar tão encantada com uma máscara.
O vestido foi o próximo. Era lindo, e parecia moldado no corpo dela. Apesar disso, Gabriele não gostou muito. Os movimentos eram limitados demais. Num combate corpo a corpo, o traje não seria favorável.
Ela estava sozinha em seu quarto, contemplando as duas vestimentas. E, por algum motivo, seu passado escolheu aquele momento para voltar a sua mente.
*
Estava frio lá fora, mas havia tantas, tantas pessoas que o calor estava proveniente. Desconfortavelmente espremida entre um e outro, a Gabriele de nove anos só não era arrastada pela correnteza devido a mão firme de uma Marie de treze em volta do seu pulso. A estação de trem cuspia pessoas pelas entradas. Eram tantas e ela não conseguia enxergar direito e ela não sabia se eram pessoas porque não parecia possível que houvessem tantas pessoas no mundo e deviam ser apenas chapéus e vestidos e ternos flutuando, flutuando no ar. Ela sequer conseguia entender o que estava acontecendo.
Algumas horas atrás, tudo estava tão normal.
Papai fora um homem bom, mamãe dizia. Fora um homem bom enquanto vivo.
Gabriele não chegou a conhecê-lo. Nem sabia dizer se queria.
Não sentia falta do que nunca lhe pertencera.
Então ela e a irmã só conseguiam viver por causa do salário minguante da mãe. Mas viviam um tanto quanto felizes, na medida do possível.
Até aquele dia.
Gabriele não conseguia lembrar como fora ao certo. O cavalo estava desgovernado, a carruagem fora de controle. Gabriele foi puxada por Marie. Não teria se salvado, do contrário.
Sua mãe não teve a mesma sorte.
Ela viveu uns dois ou três minutos depois daquilo. Uma criança de nove anos não tinha um conhecimento muito bom de anatomia ou ferimentos, mas sabia que os da mãe talvez fossem fatais.
Ela sussurrou um punhado de palavras roucas para Marie. Uma caixa com dinheiro, uma estação. Um trem para Londres. Arranjar algum trabalho. Tentar sobreviver.
E então, sua vida se esvaiu.
Simples assim.
E agora elas estavam naquela estação. Haviam passado em casa antes. Marie pegara uma caixa marrom de madeira, carcomida por cupins nas bordas. Gabriele nunca tinha visto a irmã tão nervosa. Ela pegava as malas e as bolsas e qualquer coisa que pudesse usar para guardar e enfiava roupas e comidas dentro. Esvaziou a despensa como pôde. Os armários velhos que rangiam também. E então partiram. O aluguel estava atrasado havia meses... então correram, antes que o dono do local viesse. A estação era fumacenta, tão lotada que era difícil até respirar.
E, mesmo assim, lá estavam elas, em meio ao caos e a fumaça, correndo para alcançar o trem para Londres.
*
Gabriele não tinha certeza de como lembranças de dez anos atrás podiam ser tão vívidas. Mas, se fechasse os olhos e se concentrasse, haviam pessoas e uma estação lotada.
Ela se lembrava perfeitamente do que acontecera depois. O aluguel de um cubículo minúsculo e mal iluminado. A luta da irmã, trabalhando numa alfaiataria para que pudessem sobreviver.
Ela não pode deixar de sorrir. Marie sempre gostara de moda... tinha um talento inato para a mesma. Esse talento não demorou muito a ser percebido.
E agora ela era gerente da mesma loja na qual trabalhara.
Céus, Gabriele estava tão orgulhosa das conquistas da irmã.
Os furtos começaram por volta dos quatorze.
Coisas bem pequenas. Gabriele estava tentando, mas não conseguia um emprego. E Marie ainda era uma trabalhadora comum na loja. Elas estavam num lugar melhor, mas o aluguel era mais apertado.
Então os roubos apareceram. A oportunidade perfeita. Um pedaço de queijo quando ninguém estava olhando. Um bocado de moedas deixadas no balcão de uma loja qualquer.
Aos dezesseis, tudo começou.
Alguns ladrões a notaram, e a levaram para a base pela primeira vez.
Ela se tornou, de fato, membra da Associação Ilegal de Ladrões e Furtos. Não era nada grande na época. Só um grupo de ladrões se ajudando.
Não demorou muito para ela se destacar. Gabriele tinha uma habilidade considerável.
Então, foi apresentada ao líder.
Richard Nixon.
Ele devia ter por volta de cinquenta anos, e era o mestre dos furtos. Líder de tudo aquilo. O principal comandante de toda e qualquer ação criminosa de Londres.
E, acima de tudo isso, foi o pai que ela nunca teve.
Só alguns dos melhores tinham a oportunidade de ver o rosto dele.
Ele a nomeou vice-líder.
Nessa época, Gabriele já morava sozinha, pagava as próprias contas e o próprio aluguel.
Com dinheiro de roubos, de fato, mas ainda assim dinheiro.
Gabriele pôs o vestido e a máscara, e foi maquiada por um grupo de esposas dos ladrões antes de descer as escadas.
Era hora de entrar em ação.
Bem vinda, Lady Gabriele Jacquard-LeBell.

A trama das máscarasOnde histórias criam vida. Descubra agora