Três

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É o seguinte: meu lugar não é aqui. Não que eu já tenha sentido que pertenço a algum lugar. Nunca sou branca o suciente para determinados espaços, nem asiática o suciente. Nunca sou... suciente.
Mas aqui estou eu, em Oregon, morando num fim de mundo, num lugar com mais árvores do que gente.
Sinto falta dos ruídos das pessoas vivendo a vida, sabe? Gente na rua. Sirenes. Buzinas, falação, luzes da cidade e todo o frisson gerado por uma multidão enada num espaço pequeno.
Mas aqui tudo é silencioso, tudo é muito distante, e toda hora fico ouvindo grilos — sim, grilos. E todas essas árvores filtram a luz de um jeito que deixa tudo ainda mais verde. Estou tão cercada por essa paleta de cores que é capaz de eu me tornar um leprechaun irlandês.
Eu não deveria estar aqui, mas estou. Presa no meio do nada em Oregon, com um pai distante que perdi pelo caminho. Talvez distante nem seja a palavra, e sim imprestável. Mas acho que certas circunstâncias forçam alguns caras como ele a assumir suas responsabilidades. No caso, não tinha mais ninguém para fazer isso além dele.
Minha mãe se foi. Isso parece muito verdadeiro e muito surreal ao mesmo tempo.
Além disso, eu não queria me mudar para cá. Falei isso para o meu pai assim que abri a porta e percebi quem era o homem de semblante cansado e cabelo levemente grisalho na minha frente.
Sabe, acho que realmente perdi meu pai pelo caminho, nas lembranças turvas que acabam lá pelos meus três anos. É meio difícil se lembrar de alguém que ficou em um passado tão distante.
E agora eu não só estou sendo obrigada a me lembrar dele, como também a morar com ele. Na terra dos verdes, do silêncio e da completa inexistência de transportes públicos.
É uma droga.
Sei que deveria me sentir grata por Curtis não ter me abandonado completamente, à mercê de algum programa do governo. Talvez eu devesse agradecê-lo por ter me recebido.
Pois é, a régua está bem baixa, mas assim tem sido minha vida nos últimos tempos. Hoje em dia vivo de migalhas, mas fazer o quê?
Curtis não faz ideia do que é ser pai. E mesmo que ele descubra, eu com certeza não sei o que é ter um pai . Aprendi da pior maneira que a única pessoa com quem posso contar é comigo mesma. Então acho que é isso. Eu e ele estamos ferrados, secretamente contando os dias para meu aniversário de dezoito anos, quando vou poder dar no pé e ele vai se ver livre de mim.
Que fase. Será que era assim que minha mãe pensou que minha vida seria? Mas, para falar a verdade, quem eu quero enganar?
Minha mãe não pensou em mim. Eu preciso acreditar que ela não pensou em mim . Se ela tivesse pensado em meu nome, em meus olhos, em meu sorriso ou em qualquer parte de mim, teria conseguido atravessar a neblina que cobria sua visão. Não teria feito aquilo.
Se ela tivesse pensado em mim, teria hesitado. (Porque eu não estava lá pra impedi-la.) Eu avisei que estava me contentando com migalhas.
Acordo antes de o alarme tocar, então desativo o despertador e cubro a cabeça com o edredom, apesar de já estar calor às nove da manhã. Dá para ouvir Curtis na cozinha, fazendo barulho ao se arrumar para o trabalho enquanto eu continuo escondida no quarto. Ele é inquieto. "Uma alma inquieta", dizia minha mãe nas raras vezes em que eu conseguia que falasse sobre ele, quando eu era pequena e curiosa. Naquela época, eu pensava que talvez um dia meu pai voltaria.
Minha mãe sorria quando falava dele, embora o gesto fosse uma mistura estranha de amargura e afeto, como se ela nunca tivesse conseguido entender o que deveria sentir em relação a ele. Eu me perguntava se um dia ela conseguiria.
Será que aqueles últimos momentos lhe trouxeram alguma lucidez?
Arrependimento?
Será que alguma coisa conseguiu romper a névoa que tomou conta dela, do nosso apartamento e das nossas vidas antes de...?
Não consigo pensar nisso. Quando insisto, acabo me lembrando daquele dia, das semanas que vieram antes e de todos aqueles meses em que eu queria me convencer de que tudo estava bem, mesmo sabendo que não estava. E então tudo se resume a: Por que você não foi uma filha melhor, Priscila ? Por que você não foi mais rápida? Como não percebeu que ela estava tão mal?
Não existe resposta simples ou certa para nenhuma dessas perguntas, então vou só continuar fugindo delas. Obrigada. De nada.
Ouço Curtis sair para o trabalho. Agora que a casa está vazia e não corro o risco de ter que aguentar um café da manhã tenso, afasto o edredom e pulo da cama. Estou aqui já tem mais de uma semana, mas mal comecei a desempacotar minhas coisas. Quando eu começar a abrir as caixas, tudo vai se tornar permanente.
Não estou me iludindo nem nada. Sei que estou fadada a car aqui, mas decidi adiar um pouquinho a hora de arrumar minhas coisas, mesmo que seja inevitável. Por isso existe aquele ditado sobre adiar o inevitável. Acho que é um problema inerente ao ser humano.
Ou seja, estou agindo de maneira perfeitamente normal.
Ele deixou café pronto. Encaro a cafeteira por uns segundos, me perguntando se isso é uma tentativa de fazer as pazes. Assim que eu cheguei, ele me viu bebendo café e começou a encher meu saco como se aquilo fosse prejudicar meu crescimento ou algo do tipo. Ou como se ele tivesse o direito de opinar sobre a minha vida depois de tantos anos ngindo que eu não existia.
A possibilidade de isso ser uma tentativa de fazer as pazes me deixa ainda mais irritada do que a ideia de ele só ter se esquecido de desligar a cafeteira. Sei que eu deveria ser grata... e acho que uma parte de Curtis está meio confusa por eu não demonstrar isso. Tá vendo só? A régua realmente está muito baixa. Daria para uma formiga saltar por cima dela.
Percebo que tem um bilhete e uma nota de vinte dólares presos na porta da geladeira com um ímã de plástico: "O pessoal da mudança trouxe sua bicicleta. Vá fazer amigos"
Guardo o dinheiro e jogo o papel no lixo. Tento não pensar em todos os bilhetes que tenho guardados em alguma das caixas que ainda não abri. Minha mãe adorava escrever coisas e deixar na geladeira. Citações, letras de música, piadas e frases motivacionais. De vez em quando, nos dias difíceis, eu sabia que ela estava começando a melhorar quando voltava a colocar bilhetes na porta da geladeira outra vez. Mas nem sempre isso era sinal de algo bom.
Da última vez não foi.
  "Vá fazer amigos". Como se fosse fácil, Curtis. Como se eu tivesse alguma coisa em comum com as pessoas daqui. Se houver uma garota por aí adiando o inevitável, pode até ser. Mas não vou sair perguntando isso para alguém que acabei de conhecer. Seria estranho.
Considero a possibilidade de ficar em casa o dia inteiro só para contrariar o conselho, mas Curtis ainda é uma caixa de surpresas, então não sei qual seria sua reação. Ele nunca gritou comigo nem nada assim, mas nunca se sabe. Tudo que eu sei sobre Curtis se resume ao fato de que para ele foi fácil me abandonar, além de poucas histórias que aconteceram quinze anos atrás.
Além disso, ficar fechada nessa casa abafada e sem ar- condicionado é uma espécie de amostra grátis do inferno. Decido pegar minha bicicleta e sair por aí. Talvez eu que fora o dia inteiro e volte bem tarde. Não é como se ele tivesse o direito de car preocupado. Ou de dizer que tenho hora para voltar.
Tenho quase certeza de que ele mal imagina que precisa me dizer a hora em que preciso voltar. Que amador.
O bairro de Curtis está meio que caindo aos pedaços, mas os moradores tentam fingir que não. Tipo o próprio Curtis. As casas são velhas, mas conservadas de um jeito modesto. Nos jardins estreitos e bem-cuidados, a grama é esburacada, como se até ela tivesse decidido que seus esforços são em vão e desistido de tentar.
Passo por uma senhora.
— Tarde! — diz ela.
Que jeito idiota de cumprimentar alguém.
— Oi? — grito em resposta por cima do ombro, como uma boba.
Sério, quem fala só "tarde"? É isso, então? Nossa, que droga. A escola vai ser um saco. Tenho um tempinho até começar o ano letivo, já que estamos nas férias de verão, mas quais são as chances de Curtis me deixar pular o último ano do ensino médio?
Pego a ponte para sair do bairro. A construção feita de pedra é imensa, mas não há ciclovia nem espaço para pedestres. O motorista do caminhão atrás de mim acha que é uma boa ideia buzinar a cada segundo, ainda que eu esteja pedalando o mais rápido que consigo. O veículo acaba me ultrapassando e, quando faz isso, o cara me mostra o dedo do meio. A verdadeira gentileza do interior!
Depois, ao passar pelos trilhos de madeira, começo a pensar em como seria subir em um trem e deixá-lo me levar rumo ao desconhecido.
Aposto que minha mãe teria feito isso quando era jovem. Acho que chamavam de "surfar nos trens", mas provavelmente deve ter um termo mais legal. Minha mãe era destemida. Era muito a cara dela simplesmente subir num trem e deixar tudo para trás.
Nós duas sempre fomos um time. Mas pelo jeito a gente estava em um jogo com regras que eu não entendia e, no m das contas, eu e minha mãe saímos perdendo. Parece que vivo perdendo as coisas.
Finalmente avisto indícios de civilização em vez de um monte de árvores e casas capengas. Está tão quente que dá para ver as ondas de calor emanando do asfalto no horizonte, e o centro comercial logo adiante parece mais uma miragem do que um refúgio com ar-condicionado. Sinto gotas de suor escorrendo pelas costas. O lugar tem um restaurante chinês, um salão de bronzeamento articial chamado Beijada pelo Sol com uma logo bizarra de um solzinho mandando um beijo... e um fliperama com um letreiro enorme que diz:  TEMOS AR-CONDICIONADO. Vejo algumas outras lojas por ali e uns garotos com skates fazendo manobras no quebra-molas. Parece que vou ter que me contentar com o pouco asfalto que a terra das árvores e das ruas de mão única tem a me oferecer.
Desço da bicicleta e vou com ela até um poste perto do fliperama — o lugar perfeito para prendê-la. Será que preciso mesmo usar a corrente em Oregon? As pessoas roubam aqui? Lógico que sim. Que pergunta idiota. As pessoas roubam em qualquer lugar.
De repente, do mais absoluto nada, ouço um pneu cantando, e uma minivan vira a esquina a toda velocidade, tão depressa que recuo, assustada, e acabo caindo. Ralo os cotovelos, e minha bicicleta despenca em cima de mim, o pedal batendo com tudo na minha coxa enquanto o carro continua avançando.
Minha vida não passa diante dos meus olhos. É só um "Ai" seguido de "Droga", seguido de...
Nada.
Fecho os olhos com força, mas percebo que não senti batida nenhuma. Abro os olhos devagar e estou toda encolhida, pronta para receber o impacto.
— Caramba!
— Ai, meu Deus. João! — exclama uma garota.
— Oi! Que foi? Ela apareceu do nada!
— Seu idiota! — grita ela.
Ainda meio tonta, não posso deixar de concordar que João de fato deve ser um idiota.
Eu me apoio nos cotovelos machucados para erguer o corpo dolorido. Quando olho para o garoto que quase me atropelou, ele abre um sorriso para mim como se daquele jeito fosse me amolecer. Tem outro garoto no banco do passageiro, mas ele não está sorrindo. Em vez disso, parece ter visto o mesmo fantasma que eu.
— João! Você é inacreditável! — grita a garota outra vez.
Ela abre a porta e sai do carro. Está com uma blusa listrada que deixa a barriga à mostra. Sabe como algumas garotas se vestem como se as roupas tivessem sido feitas exatamente para elas? Ela é alta, tem a pele bronzeada, pernas compridas e cabelo escuro. A garota coloca uma mecha atrás da orelha e corre até onde estou. Observo o movimento com atenção e co hipnotizada pela cor das unhas dela, um tom curioso de esmalte entre o roxo e o azul, algo parecido com lavanda.
Estou mais ofegante agora do que quando estava no chão, quando tinha certeza de que ia partir dessa para uma melhor.
Os olhos escuros da garota — profundos, destemidos, innitos — encontram os meus, e é quase como se agora eu estivesse realmente sendo atropelada. Sinto uma espécie de cataclismo nos sentidos.
Não consigo ver mais nada em volta. Não há nada em minha visão periférica.
Ela é a única coisa que vejo.

A GarotaOnde histórias criam vida. Descubra agora