vinte e dois

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— Carol! Sai daí agora!
— Você não manda em…
Pulo em cima dela, e nós duas rolamos pela encosta até cairmos na grama alta que cresce em meio às árvores. Ela está em cima de mim, e seu cabelo balança com o vento forte quando o trem passa ao nosso lado. O apito soa, o som agudo preenchendo meus ouvidos. Carol está de olhos arregalados.
A barulheira do trem e as nuvens de poeira que ele levanta ao passar deveriam estar fazendo com que tudo parecesse caótico, mas só consigo ver Carol, só consigo sentir o coração dela batendo junto com o meu. A sensação é esquisita — meus batimentos desaceleram para acompanhar os dela, nossas respirações no mesmo ritmo. Levanto o braço e coloco uma mecha de cabelo dela atrás da orelha.
Carol não se afasta. Ela nem pestaneja.
Quando seguro seu rosto, ela se aconchega no meu toque e fecha os olhos. Quando coloca a mão sobre a minha, é como se eu descobrisse pela primeira vez o que é sentir alívio.
Finalmente, depois do que pareceu ser uma eternidade.
É assim que deve ser.
O ruído do trem começa a diminuir à medida que ele desaparece ao longe. Continuo onde estou, deitada debaixo de Carol, confortável sob o corpo dela, sentindo meu coração quase rasgar meu peito. Um coração que não me pertence mais.
Ela se levanta só um pouquinho, embora isso esteja longe de ser o que desejo. Imito o gesto até que ficamos deitadas lado a lado, nossas pernas ainda enlaçadas.
Carol não se afasta mais.
— Você está bem? — pergunta ela.
Assinto.
— Eu devia ter prestado atenção. Me desculpa — diz ela.
— Está tudo bem. Ninguém ia sentir minha falta se eu fosse esmagada por um trem.
Carol balança a cabeça como se a ideia fosse impensável, o que me deixa feliz.
— Seu pai…
— Já falamos disso — interrompo.— Ele não…
— Eu achei seu pai legal — diz ela, parecendo quase intrigada.
— Hã?
— Você se lembra daquele dia em que fui na sua casa? Seu pai estava fazendo panquecas. Ele é legal.
— Talvez.
— Você acha que ele está melhorando nessa coisa toda de ser pai? — pergunta Carol, atenta. — É o que você merece, Priscila.
Tenho que dizer a mim mesma que é a adrenalina falando, que é por isso que ela está forçando esse assunto mesmo quando eu já tinha dito que não queria falar sobre isso.
— E sua mãe?
Congelo. O corpo dela fica tenso ao lado do meu, mas Carol não se afasta. Em vez disso, ela chega mais perto, como se soubesse que em breve ela é quem vai ter que me segurar.
— Você nunca fala dela — diz Carol.
— Ela não está mais aqui — conto, porque ainda não consegui encontrar uma forma de dizer a verdade.
Ninguém pensa nessas coisas até precisar . Nunca percebemos quantas perguntas vão exigir novas respostas, respostas que a gente nunca deu.
— Ela morreu — revelo.
Nós nos olhamos sob as sombras das árvores, e os dedos de Carol se apertam em volta de meu braço com delicadeza, um gesto sutil que diz “Estou aqui”. Nós arfamos juntas, nossos corpos se erguendo ao mesmo tempo, como se tivéssemos o mesmo coração, ainda que apenas por um breve momento.
— Ela sofreu um acidente ou… — Carol hesita. — Não sei se posso perguntar… Me desculpa, eu não… Não sou muito boa com essas coisas. Mas você pode conversar comigo. Eu posso tentar. Quero tentar. Quero poder te ajudar.
Ela parece ler minha mente e me oferecer exatamente o que preciso.
E só por isso consigo dizer em voz alta:
— Minha mãe se matou.
Silêncio. Queria que minhas palavras pudessem sair da minha boca e ir direto para a água, sendo depois levadas pela correnteza até um rio ou até o oceano, para fazer parte desta grande esfera azul. Era assim que minha mãe chamava a Terra.
Ainda estou com as cinzas dela, mas sei que ela odiaria ficar numa urna. Ia querer estar em algum lugar vivo, mutável e bonito, mas não consigo nem olhar para aquele objeto, muito menos abri-lo. Sou um fracasso às vezes.
— Sinto muito, Priscila.
Assinto. Já ouvi muito isso, mas, na verdade, o que mais as pessoas poderiam dizer?
— Ela… Ela era muito triste — digo. — Ela passou por alguns períodos de depressão. Em um dia estava muito feliz, depois muito deprimida. Mas, no geral, ela sempre saía dessa.
Até que…
Paro de falar e encaro minhas mãos. O peso do corpo de Carol contra o meu, tão acolhedor e familiar, me dá coragem para continuar. Porque eu preciso mesmo falar sobre isso, não preciso?
— Não acho que ela fez de propósito. Acho que ela estava… tentando amenizar o sofrimento e acabou exagerando na dose.
E eu… — Faço uma pausa e respiro fundo, devagar. — Eu perdi meu ônibus. Eu pegava o ônibus das duas e quinze, mas acabei perdendo e peguei o das duas e meia. Todos os dias eu penso que… se eu não tivesse perdido o ônibus, talvez tivesse encontrado minha mãe a tempo… De repente me sinto exausta depois de finalmente ter colocado para fora o pensamento que estava remoendo em meio ao turbilhão da minha mente. Sinto lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não consigo encontrar forças para secá-las.
Então percebo que não preciso.
Carol segura meu rosto como eu segurei o dela e começa a secar minhas lágrimas com os polegares, cada uma delas, como se fossem preciosas. Como se eu fosse especial.
— Não, Priscila… Não …
Eu nunca tinha sentido esse tipo de cuidado antes, não até sentir o toque de Carol em minhas bochechas, afastando minhas lágrimas molhadas.
— Você fez tudo o que podia fazer — continua ela. — Se você a encontrou… Priscila, sinto muito.
Ela pressiona a testa contra minha têmpora, e eu sinto lágrimas que não são as minhas na bochecha.
Nossas lágrimas se misturam, nossos olhos se encontram, e ali, em meio à nossa dor, nos tornamos uma só. Não existe “eu”, não existe “ela”. Nós existimos juntas.
— Não consigo acreditar em tudo que você já enfrentou — sussurra Carol. — Tem noção de como você é incrível?
Ela leva a mão à minha nuca e a acaricia. Sinto um arrepio.
Não consigo reprimir o som que minha garganta emite, um soluço abafado que simplesmente se liberta de mim. Com seu toque e suas palavras tranquilizadoras, Carol liberou tudo que eu estava reprimindo, como se eu fosse uma garrafa de champanhe depois de ser sacudida, explodindo por todos os lados.
— Sei que você veio parar aqui nessa cidade por uma razão horrível, e sinto muito pela sua mãe — murmura Carol. — Mas fico muito feliz por você estar aqui comigo. Por ter conhecido você. Por você confiar em mim a ponto de me contar isso.
Eu me afasto um pouco, ofegante, e sinto minha respiração tocando o rosto dela quando Carol olha no fundo dos meus olhos. Ela sorri, tirando a mão da minha nuca e colocando uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha, como eu ?z com o cabelo dela pouco antes. Ela não baixa o braço, e a mão dela permanece ali, tocando meu rosto com delicadeza. Sinto um arrepio e contraio as pernas. O toque de Carol se suaviza, mas mesmo assim ela não tira a mão.
— Ei — diz Carol. — Lhamo você.
Faço uma careta.
— O quê?
— Eu. Lhamo. Você — repete Carol, dessa vez pausadamente.
Eu amo você.
Dou uma risada com uma fungada meio nojenta.
— Nossa, isso foi muito meloso! — exclamo.
— Lógico que não!
— Foi, sim. Você é melosa. Você finge que não, mas fica na cara. É só parar e prestar atenção.
Seguro suas mãos quando ela tenta se afastar com um beicinho, fingindo estar ofendida.
— E eu estou prestando atenção — completo.
Quando digo isso, estou segurando o punho de Carol no espaço entre nós. O corpo dela se aproxima do meu, como se esse fosse o lugar onde ele deveria estar.
— Lhamo você também — sussurro, porque este é um momento para vozes baixas. É um momento para ser lembrado.
Toco o antebraço de Carol na altura dos punhos, o ponto mais macio do corpo de Carol que toquei até agora, com suas veias delicadas e uma pequena elevação do osso. Ela respira de maneira irregular e se aproxima, quase fechando os olhos, mas vidrada em minha boca.
Estou prestando atenção nela. Na versão dela que ela tenta esconder.
Na garota que olha para minha boca como se estivesse prestes a me devorar.
— Nunca conheci alguém como você — diz ela, num tom muito suave, em meio ao silêncio da bolha que criamos para nós duas.
Já não consigo ouvir som algum. Não ouviria nem o estrondo de um trem se aproximando se eu estivesse amarrada nos trilhos. Não restaria nada de mim.
Mas, caramba, esse seria um jeito incrível de morrer. Nos braços dela, com os lábios dela a centímetros dos meus.
A única coisa melhor do que isso seria algo em que eu não consigo me atrever a pensar. Estamos tão perto, como tantas vezes antes, mas ela se afastou em todas elas. Mas, se eu ?zer o movimento, posso perder tudo.
Posso dar com a cara na parede.
Ou posso ficar aqui para sempre, olhando nos olhos dela.
Foi ela quem se mexeu ou fui eu? Não sei dizer. Acho que fomos nós duas. Foi um ponto de ruptura, um movimento decisivo acontecendo dos dois lados ao mesmo tempo. Ela e eu sendo um só coração a essa altura — uma só respiração, um só batimento cardíaco.
Nossas bocas se tocam. É um toque muito sutil; nossos lábios mal se encostam. Nós nos afastamos, depois voltamos a nos aproximar, e meus lábios pousam sobre os dela como uma pedrinha raspando a superfície de um lago de águas calmas.
Carol suspira, e eu sinto um repuxo nas profundezas do meu ser segundos antes de a língua dela tocar a minha, e aí… Ah… Aí… Dedos e pernas entrelaçados, a coxa dela pressionada entre minhas pernas como naquela noite, na cama, como se fosse algo familiar que as duas desesperadamente queriam repetir.
Meus dedos seguram os cabelos dela, e ela faz o mesmo com o meu, e é tão estranho e tão sublime ao mesmo tempo, uma imitando os gestos da outra. A mão dela correndo por minha clavícula… descendo, descendo, e ela suspira outra vez. Minha mão repete o mesmo movimento no corpo dela, como um espelho.
Sinto o corpo pulsar por inteiro, e minha cabeça gira, inebriada pelo cheiro do xampu floral de Carol e pelo calor desnorteante de sua boca. Aquelas duas palavras, para além de qualquer trocadilho. A verdade por trás delas latejando em meu peito com um tambor furioso enquanto nos beijamos como se o mundo estivesse prestes a acabar.
Lhamo você.
Lhamo você.
Amo você.

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