Onze

233 23 5
                                    

Quando Carol para em frente à casa dela, tento esconder minha surpresa, mas, caramba, a casa é enorme. Parece que saiu de um filme, com seu gramado extenso e bem-cuidado, paredes branquinhas e uma porta verde adornada com uma guirlanda de ores.
Carol larga a bicicleta na grama verdejante e vai andando em direção à casa, e eu corro para acompanhar.
Tudo é ainda mais bonito lá dentro, com uma escada grande e móveis antigos de madeira maciça. Aqueles móveis não são do tipo que se compra, mas do tipo que se herda. Tem até um lustre no hall.
— Carolyna, é você? — pergunta uma voz feminina, vinda de outro cômodo. — Até que enfimm! Olha, você sempre me atrasa. — A mulher entra na sala de estar com o sapato de salto alto ressoando no chão. Assim que olha para Carol, diz: — Nossa, que roupas são essas? Compro tantas roupas bonitas e você insiste em usar esses trapos...
Quando nota minha presença, a mulher congela no lugar. A decepção no rosto da mãe de Carol dá lugar a um sorriso iluminado em uma fração de segundo.
— Você trouxe uma amiga?
— Essa é a Priscila.
— Muito prazer, Priscila. Meu nome é Fernanda. Que casaco bonitinho, o seu.
Ela me olha da cabeça aos pés de um jeito que deixa evidente que pensa o exato oposto do que está dizendo.
Cerro os punhos por baixo das mangas da jaqueta que pertencia à minha mãe.
— Obrigada.
— Vou demorar — avisa ela para Carol. — Sua irmã está na toca. Deixei dinheiro para o jantar na porta da geladeira. Até mais tarde, meninas.
Fernanda pega a bolsa e vai embora.
— Ela vai para um encontro de mulheres ou alguma coisa assim. Acho que é beneficente — explica Carol, me chamando com um gesto para ir até a sala de estar. — Meu padrasto está viajando, então preciso cuidar da Emma.
Vejo um decantador de cristal e alguns misturadores sobre um armário espelhado. Carol para diante do móvel, tira um grampo do cabelo e começa a cutucar a fechadura.
— É sério que você está...?
Não consigo terminar a pergunta, porque ela já abriu o armário com a facilidade de um especialista.
— Sou uma caixinha de surpresas — solta ela, sorrindo para mim por cima do ombro.
Carol pega uma garrafa e tranca o armário.
— Eles não vão sentir falta desse aqui — declara ela. — É um vinho de ameixa que ganharam de presente um milhão de anos atrás.
— Se você diz.
Ela pega duas taças da bandeja em cima do armário. — Vem, vamos ver o que a Emma está fazendo.
Acompanho Carol pela casa. Em todos os cantos tem algum objeto chique e muito fácil de quebrar, o que me faz grudar os braços ao corpo e pensar em nunca, jamais entrar num lugar assim com mochila, porque eu com certeza derrubaria algo sem querer.
A "toca" é uma espécie de sala de cinema enorme. A maior TV que já vi está centralizada na parede e há alguns sofás de veludo branco com almofadas aconchegantes espalhadas pelo ambiente. Uma menina está sentada de frente para a TV, vendo A história sem fim enrolada em uma manta.
— Emma, dá um oi para minha amiga Pri — pede Carol, se acomodando no sofá e se servindo do vinho.
Ela me passa uma das taças de cristal, e eu me sento ao lado dela.
— Oi, Emma.
— Oi!
Emma acena e volta a assistir ao filme no mesmo segundo.
— Quantas vezes você já viu isso hoje? — pergunta Carol.
— Só essa — responde Emma.
— Está mentindo?
— Talvez — responde Emma, cabisbaixa.
Carol ri.
— Precisa ser mais convincente, hein? Eu percebi a mentira na hora.
Emma fica em silêncio, hipnotizada pela tela.
— Que mau exemplo — comento.
— Só estou preparando minha irmã para uma vida com minha mãe — responde Carol.
Eu me acomodo no sofá e dou golinhos curtos no vinho. É tão doce que preciso tomar aos poucos; o sabor da ameixa e das especiarias é quase enjoativo, e dá para sentir o cheiro da bebida no ar.
Não sei como fazer isso. Não sei como... estar aqui. Simplesmente estar aqui. Respirar ao lado dela é difícil porque tenho a impressão de que vou derreter toda vez que Carol se mexe um pouquinho.
Ela não está sentindo as mesmas coisas que eu. Não é possível que esteja. Só está prestando atenção ao filme com a mão aberta sobre o sofá, pousada no espaço entre a gente, como se isso não fosse a tentação de um desao e o despertar de um desejo enlouquecedor.
Carol tamborila no sofá, suaves tap, tap, tap, e eu fico vidrada naquele tique em vez de olhar para a TV. O que ela faria se eu estendesse minha mão e interrompesse aquele movimento inquieto? Será que ela reagiria bem, como fez no lago, me abraçando como se já estivesse esperando aquilo?
Quero descobrir. Quero tanto que sinto a boca ficar seca. Passo os dedos pela gargantilha, que de repente parece muito apertada. Tento me lembrar de como respirar. Estou dando na cara. Será que ela percebeu? Meu Deus, por favor, espero que ela nunca perceba.
Mas então Carol olha para mim. Ela sorri com uma expressão maliciosa enquanto bebe o vinho e, de repente, tudo o que consigo pensar é: Por favor, por favor, espero que ela perceba.
Por favor, que a mão dela toque a minha.
Ela toca.
Por favor, que o dedo mindinho dela se entrelace com o meu, como se estivéssemos fazendo uma promessa silenciosa. Só eu e ela.
Isso acontece.
Por favor, que ela incline o corpo, que seu cabelo escorra para a frente, que seus olhos encarem nossas mãos como se ela estivesse lendo meus pensamentos.
— Vamos para o meu quarto — sussurra Carol.
Pensar no quarto dela, nos lençóis macios, naquele espaço sagrado... no lugar em que ela fica completamente... De repente, fico muito consciente de todas as partes do meu corpo. Carol é uma camaleoa, e quero ver quem ela é de verdade. Já tive um vislumbre, então sei que vou reconhecê-la... se ela se mostrar para mim.
Sigo Carol pela escada e depois até o fim do corredor, até que ela empurra uma porta à direita.
— Chegamos — anuncia ela com um sorriso nervoso.
Como o restante da casa, o quarto é grande. Não sei o que estava esperando, mas denitivamente não era uma cama com dossel e lençóis rosa-bebê. A mesa no canto tem mais a cara dela: canetas com pompom e uma pilha de DVDs equilibrada de um jeito duvidoso. Reparo em um par de sapatilhas de dança penduradas pelos cadarços no encosto da cadeira e papéis dobrados em triângulos espalhados pela mesa.
Reconheço os papéis: é uma brincadeira que as garotas populares faziam na minha antiga escola, trocando segredos em cada dobradura. Não faço a mínima ideia de como dobrar um desse jeito; será que é um pré-requisito para ser a garota do momento? Ou elas simplesmente nascem com esse tipo de conhecimento? Pequenos papéis dobrados com perfeição para caber em bolsos rasos, além de jogadas de cabelo que fazem qualquer um se sentir como se tivesse levado um soco no estômago. E ainda sorrisos que dizem: Estou te vendo.
Eu me viro e dou uma olhada na parede do outro lado. Há uma estante instalada ali que vai do chão até o teto e está recheada de troféus.
— Aff — resmunga Carol, jogando o celular na cama.
O aparelho escorrega e vem parar perto dos meus pés. No visor, vejo a mensagem: "J0a0zinh00: Vem pra cá."
— Garotos são tão idiotas, né? — pergunta ela, olhando para o celular.
Não sei o que dizer, então fico em silêncio. Não sei se concordo ou não.
Carol se joga na cama, bem ao lado de onde estou, e seu cabelo se espalha como um leque pelo cobertor. Ela está tão perto que eu poderia encostar no cabelo dela. Eu me esforço para não fazer isso, ainda que meus dedos estejam formigando e minha cabeça esteja cheia de perguntas: como seria colocar o cabelo dela atrás da orelha? Será que meus dedos encostariam no brinco dela? São pequenas bolinhas brilhantes que agora, depois de ter conhecido a casa de Carol, suspeito serem diamantes.
— O que achou do meu quarto, Pri?
— Você se preocupa mesmo com a minha opinião, hein?
Eu me deito ao lado dela na cama e me questiono se, caso nossos braços se tocassem, ela pensaria que foi de propósito.
— Não deveria, né? Ainda nem vi seu quarto. Vai que você tem mau gosto?
— Meu gosto é excelente, para a sua informação — respondo. — Mas meu quarto até ontem se resumia a um monte de caixas, e agora o único móvel é uma cômoda terrível que Curtis comprou, além de uma mesa de metal que parece ser da década de 1950.
— Seu pai tinha que estar se esforçando mais para fazer você se sentir em casa — diz ela, franzindo o cenho.
Carol olha para mim e, caramba, a gente está tão perto. Eu não deveria estar deitada assim ao lado dela.
— Curtis ainda não sabe como ser pai — respondo.
Ela fica toda bravinha. É fofo, na verdade. Pessoas que tiveram um bom pai ou um bom padrasto sempre reagem assim, e parece que Carol teve os dois. Deve ser difícil imaginar a vida sem uma rede de apoio quando você sempre teve uma.
— Bem, ele que aprenda.
— Não estou muito a fim de falar disso — comento.
Carol felizmente abandona o assunto.
— Seu quarto é legal — continuo. — Adorei os prêmios naquela parede ali.
Ergo o corpo e me apoio nos cotovelos para dar uma olhada na parede cheia de troféus de ouro e prata. Vários têm gravuras de dançarinas.
— Então você é bailarina? — pergunto.
— Faço dança competitiva.
— Qual é a diferença?
Carol arqueia a sobrancelha como se achasse que estou sendo sarcástica.
— Não, é sério! Eu não sei — digo.
— Olha, para começo de conversa, quer dizer que danço para vencer. E eu venço... com certa frequência — explica ela, sem o menor vestígio de falsa modéstia. — Mas não sou bailarina. Eu danço várias coisas diferentes.
— Então você é multifacetada. Ela sorri.
— Nunca tinham me dito algo assim antes.
— Parece mais difícil do que só focar em uma área.

A GarotaOnde histórias criam vida. Descubra agora