Dezessete

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O caminho até a festa é um pouco demorado. O céu começa a escurecer, e os faróis do carro são a única coisa que ilumina a estrada de mão dupla. Conforme vamos avançando, as árvores se tornam cada vez maiores e as casas cada vez mais esparsas.
— Tem certeza de que sabe onde a gente está? — pergunta Collen pela terceira vez.
— Dá para parar de perguntar a mesma coisa toda hora? — retruca João. — Estou tentando prestar atenção na estrada! Se eu acabar atropelando um animal, vai ser culpa sua.
— A gente chama de "lugar afastado" por uma razão, Collen — comenta Allan, que está sentado no banco do passageiro.
— Mas a gente está demorando muito para chegar — reclama Collen, emburrada, se afundando no banco.
Collen se vira para trás, reclamando comigo e com Carol.
— Não sei por que vocês acharam que isso era uma boa ideia.
— Allan disse que ia ser legal — explica Carol. — E foi você quem quis sair.
— Eu queria que a gente fizesse algo mais tranquilo — explica Collen — não que a gente se metesse no meio do mato para ser devorado por um urso.
— Nessa altura do campeonato, o urso estaria me fazendo um favor — resmunga João.
— Ei! — protesta Collen, arregalando os olhos. — Seu grosso!
— Ai, Collen, calma — diz Malu, que está sentada ao lado dela, tirando os fones de ouvido. — Parece até que você nunca saiu da cidade. Nós não estamos indo acampar, é uma festa num celeiro.
— Vira para a frente antes que você comece a ficar enjoada — diz Carol, fazendo um gesto circular no ar para Collen, que se endireita no assento, e se afunda no banco outra vez.
— Não sei por que a gente não ficou de boa lá em casa — choraminga Collen. — Tipo o que a gente faz normalmente.
Ao dizer isso, Collen lança um olhar venenoso para mim. Até parece que esse programa foi ideia minha.
Eu me mexo no banco, tentando não deixar isso me afetar. Collen não me quer ali. O jeito com que ela e Malu olharam uma para a outra quando perceberam que eu estava com Carol me deixou com a impressão de que Carol não contou para ninguém além de Allan que eu iria junto. Ou vai ver ela não contou para ninguém e Allan foi a única pessoa legal o suciente para disfarçar a surpresa. Ele pelo menos sorriu quando me viu. João ficou em silêncio e tentou puxar uma das tranças que Carol fez em meu cabelo.
— Talvez o que a gente faz "normalmente" não seja mais tão legal assim — argumenta Carol. — Parece que vocês não querem sair da mesmice. Daqui a pouco vamos nos formar, gente. Por acaso vocês querem ser fracassados tipo a Blake Wilson, estagnados nessa cidade para sempre?
— Nossa, bate na madeira! — exclama Collen, horrorizada. — Você sabe muito bem que odeio essa garota.
Carol ri.
— Ficou com medo, né?
— Você é muito sem-noção — declara Collen. — E eu não sou careta só por não querer sair para ficar bêbada no meio do nada.
— O Jamie é legal. Os amigos dele também — comenta Allan, lá da frente.
Estou começando a achar que Allan só tem um estado de espírito: tranquilão. Sorte a dele, considerando os amigos que tem.
— Jamie e o pessoal plantam maconha — murmura Malu. — Malu... — diz Allan, com um tom preocupado. Começo a repensar a imagem pacíca que tenho dele. — Não é como se fosse segredo — rebate Malu.
— Mesmo assim. Você podia ser um pouco mais discreta — repreende Allan. — Fiquem de boa nessa festa. Senão vai pegar mal para mim.
— Não vou estragar sua reputação com seus amiguinhos maconheiros — diz Malu. — O que você pensa de mim, Allan? A gente se conhece desde os cinco anos.
— Você sabia disso? — pergunto para Carol, baixinho.
Ela dá de ombros.
— Não é nada de mais. Não esquenta.
— Só espero que a gente não esteja indo para uma plantação de maconha — comento.
Carol ri e diz:
— Não está na safra, meu bem.
Fico vermelha.
— Desculpa, não sei muita coisa sobre a arte de cultivar maconha — respondo, num tom sarcástico.
Malu dá uma risada.
— Não precisa se preocupar, você vai acabar aprendendo, agora que mora aqui.
— E nunca mais vai gostar das porcarias que as pessoas vendem em outros lugares — completa Allan.
Acho graça.
— Com sorte não vou ficar aqui tempo o bastante para desenvolver um paladar seletivo.
Allan se vira no banco.
— Vai dar o fora assim que puder? — questiona ele.
Ele está sorrindo, mas percebo que Carol fica tensa.
— Você não?
— Com toda a certeza. Talvez a gente possa dar no pé juntos.
Será que ele está flertando comigo? Pelo sorriso, eu poderia jurar que sim.
— Operação "Fuga do inferno" iniciada — digo. — Demorou.
— Vou junto — declara Collen.
— Ah, fala sério. Não é a mesma coisa — comenta Allan. — Você vai estudar em Princeton, que nem sua irmã e seu pai. Priscila e eu... A gente tem que se esforçar para sair de um buraco como esse aqui. Não é?
Ele arqueia as sobrancelhas algumas vezes seguidas e olha para mim.
— Sim. É mais difícil quando não se nasce em berço de ouro — respondo.
— Eitaaaaa! — diz Allan, se virando para Collen. — Ei! — protesta ela, dando uma risadinha.
— Desculpa, mas é verdade — digo.
— Não, você tem razão — concorda Collen. — Tenho sorte mesmo. Meu pai faz questão de me lembrar disso. Ele não quer que eu acabe cando mimada.
— Você não é mimada, meu amor — diz Carol, inclinando-se para abraçar Collen por trás.
— Mas você é — provoca Collen.
Carol suspira como se estivesse ofendida e volta a se encostar no banco. Malu dá risada.
— Minha mãe é mais rígida do que a sua! — protesta Carol.
— Pode ser, mas seu padrasto e seu pai comem na sua mão — argumenta Collen.
— Sério, é muito injusto. Você é, tipo, a princesinha do papai duas vezes.
— Pois é, é superlegal meus pais terem deixado de se amar e isso ter destruído minha família. Amo ter sido abandonada — diz Carol, com uma acidez que destoa do tom da conversa até então.
Collen e Malu se entreolham e viram para a frente, sem saber como lidar com a ferida que cutucaram sem querer.
— Pelo menos você tem a Emma — digo.
— Sim. — Carol concorda com a cabeça. — Eu amo a Emma.
— Ela é a pessoa mais fofa do mundo — comento, na intenção de aliviar o clima pesado, mas a expressão de Carol continua sombria, como se ela estivesse se lembrando de coisas que não queria. — Ela também vai dançar?
— Com certeza — responde Carol. — Ela dança desde os três anos. Assim como eu.
— Nossa, a Emma tem uma coreógrafa de sapateado que é tão bonitinha — diz Malu, pegando a deixa para mudar de assunto.
Sinto uma onda de alívio quando a conversa parte para outro tópico e percebo Carol relaxar aos poucos. Ela já está rindo e tagarelando de novo quando nalmente percebemos que chegamos ao avistar um copo de plástico vermelho decorando uma caixa de correspondência.
— É aqui — avisa Allan.
João gira o volante para entrar no caminho de cascalho que dá para a entrada da propriedade, o carro balançando à medida que passamos por cima de buracos e morrinhos de terra no meio da estrada.
Quando algumas luzes aparecem em meio às árvores, Allan reforça:
— Não se esqueçam do que eu disse sobre ficar de boa.
O celeiro é antigo e vermelho, como todos os celeiros, acho. Não entendo muito do assunto. Tem piscas-piscas pendurados por todo canto, tanto do lado externo quanto lá dentro. Saímos do carro, e o ar é fresco, com cheiro de mato. O feno do celeiro está empilhado em um cercadinho anexo.
A música parece ressoar nas vigas de madeira da construção, e pode até não ser época de plantar maconha, mas o lugar certamente está com um aroma de erva inconfundível. Há uma nuvem de fumaça que vem da parte dos fundos, e sei que, se chegar perto demais, com certeza vou ficar chapada. O que não seria uma má ideia, considerando todos os fatores.
Um deles sendo João, que segura a mão de Carol e pergunta, arrastando-a para dentro:
— Você queria absinto, não queria, gatinha?
Carol não se opõe, e acho que eu não ficaria tão chateada se ela não tivesse olhado para trás, para mim, como se soubesse que aquilo não está certo.
— Vem, Priscila — chama Allan.
Ele segue os dois até o centro do celeiro, onde um cara de cabelo cacheado está sentado sobre um montinho de feno. Ele parece ser o centro das atenções e está cercado de gente.
Ele olha para nós.
— E aí, Jamie? — cumprimenta Allan.
— Allan, que legal ver você — diz o outro, ficando de pé.
Os dois se cumprimentam com aquele toque que os garotos fazem, tocando os ombros em um gesto que é meio abraço, meio aperto de mão.
— Obrigado por convidar a gente.
— Tem cerveja lá no fundo, no último estábulo. Que bom que você veio. A gente se fala mais tarde.
Allan assente, e Jamie dá um tapinha amigável nas costas dele antes de desaparecer entre os outros convidados.
— Vou pegar uma cerveja — avisa Collen.
Malu e Allan vão atrás dela, e eu fico sozinha com Carol e João.
— Vem cá — chama Carol.
Ela começa a se enfiar na multidão, e eu a sigo, odiando o fato de João estar tão perto. Ele não está mais segurando a mão de Carol. Em vez disso, está com a mão no fim das costas dela, com a maior naturalidade, como se não tivesse que pensar duas vezes antes de fazer isso. Porque de fato não pensou. Ele pode tomar essa atitude sem se preocupar, sem ficar ansioso, sem...
Respiro fundo. Parece que a fumaça de maconha está começando a bater. Nossa, nesse ritmo não vou nem precisar de bebida.
— Ei!
Uma garota com cabelos morenos toca meu ombro quando passo. Paro de andar.
— Adorei sua jaqueta — diz ela. — É vintage?
— Aham.
— Legal.
O delineado dos olhos dela parece mais afiado do que uma lâmina.
— Nunca tinha visto você por aqui — comenta ela.
Quando a garota ergue o olhar, Carol está a encarando.
— Oi, Carol — cumprimenta ela.
— Beatriz.
— Como é seu nome? — pergunta Beatriz, olhando para mim.
— Priscila.
— Muito prazer.
— Foi você quem trouxe o absinto? — pergunta Carol.
Beatriz dá uma risada.
— Quem mais teria sido? Venham. Deixei as coisas no depósito.
— Como vai a faculdade? — pergunta Carol, deixando João para trás e se colocando entre mim e Beatriz.
— Ótima. Queria estar lá agora, mas fazer o quê — responde Beatriz, dando de ombros.
O depósito deve ser do tamanho de uns quatro estábulos e está cheio de selas e outros apetrechos de montaria. Há também uma mesa grande que serve como uma escrivaninha improvisada de frente para uma janela que dá para uma área aberta. O lugar tem cheiro de couro e algo oleoso, e a música da festa está um pouquinho abafada, mas não muito longe; a luz de fora adentra o espaço pela janela. João está um pouco atrás de nós, com uma expressão impassível.
— Eu e Carol dançávamos juntas. Sou um ano mais velha, então já dei o fora desse lugar — explica Beatriz.
— E mesmo assim está aqui agora — comenta Carol de um jeito meio insolente, e fica nítido que ela e a garota com certeza levavam a sério o lance de competitividade na dança competitiva .
Será que Beatriz foi adversária de Carol? Já vi filmes de dança, então sei que essa teoria é bem plausível. Estou morrendo de curiosidade, louca para ter um vislumbre da vida pessoal de Carol, ainda que eu tenha a impressão de que a dança é mais importante para a mãe do que para ela.
— Nem todo mundo tem um padrasto que banca férias na França, meu amor — diz ela, dando tapinhas amigáveis no braço de Carol. — Alguns de nós precisam trabalhar para viver. Falando nisso... você vai competir esse ano?
— Lógico — responde Carol.
Beatriz se senta na mesa e cruza as pernas.
— Aqui não tem álcool, não? — grita João, bem atrás de mim.
Estremeço.
— Você gritou no meu ouvido — reclamo.
— Vejo que você continua um doce de pessoa, Joãozinho— observa Beatriz.
Ela pega uma garrafa com um rótulo de aparência envelhecida.
— Você sabe que odeio que me chamem assim — diz ele.
— Sei, Joãozinho— responde ela, animada.
De repente começo a adorar a garota.
Beatriz coloca dois copos sobre a mesa, pega um saquinho de cubos de açúcar e uma colher elegante, diferente, especíca para absinto. A colher é plana com detalhes entalhados e vazados que lembram as aberturas acústicas de um violino. Ela coloca o utensílio sobre um dos copos e depois pousa um cubo de açúcar sobre a parte vazada.
— E você, Priscila, como foi acabar com esse tipo de companhia? — pergunta Beatriz, indicando Carol com a cabeça.
— Você fala como se eu fosse horrível! — protesta Carol.
— Você é um pesadelo, meu bem — declara Beatriz.
— Sorte a sua que você trouxe o absinto — diz Carol, jogando o cabelo por cima do ombro.
— Aposto que no fundo você sente minha falta — diz Beatriz. — Ninguém mais é páreo para você.
— Vamos logo com a bebida — interrompe João.
— Quem disse que vou dividir com você? — indaga Beatriz. — Vai lá beber cerveja como um bom homem das cavernas.
— Assim você ofende os homens das cavernas — digo.
Beatriz abre um sorriso cúmplice para mim.
— Ela é esperta demais para ser sua amiga, Carol — dispara Beatriz.
— Você tem andado com uma gentinha de baixo nível, Carol — comenta João, com cara de nojo. — Sabe como é aquele ditado, me diga com quem tu andas...
— Então o que signica ela andar com você ? — rebate Beatriz.
João fica em silêncio, visivelmente irritado. Ele se barbeou tão mal que dá para ver uma trilha de pelos onde ele não passou a lâmina, mesmo nesse depósito pouco iluminado.
Mas ele não se mexe. É como se estivesse travando uma batalha unilateral com Beatriz, porque no instante seguinte é como se a garota tivesse se esquecido completamente da presença dele.
— Já bebeu absinto? — pergunta ela, voltando-se para mim. Faço que não.
— Vem aqui.
Beatriz faz um gesto para que eu me aproxime, e Carol me acompanha. A garota abre a garrafa e começa a derramar o líquido sobre o cubo de açúcar.
— La fée verte .
— Isso aí realmente faz a pessoa ver coisas? — pergunta João, desconfiado. — Tipo o que acontece quando a gente come cogumelos?
— Não, Joãozinho. Não faz. Esse papo de que absinto é alucinógeno não tem base científica.
— Mas deixa a pessoa bêbada de um jeito diferente — completa Carol. — Conheço umas garotas que já experimentaram.
— É o que alguns dizem — diz Beatriz, dando de ombros. — É tipo ficar bêbado de um jeito meio sóbrio.
— E sem alucinar? — pergunto, só para garantir.
Não estou a fim de beber uma coisa que vai me fazer ver monstros no meio das árvores ou algo assim.
— Juro que não — garante Beatriz. O sorriso dela cresce. — Eu até diria que vou cuidar de você, mas não pegaria muito bem, já que estou comprometida.
— Pelo amor de Deus — resmunga Carol, logo atrás de mim.
— Pelo jeito você continua santinha, Carol.
Os olhos de Beatriz brilham com uma malícia que não consigo compreender.
— Não continua, não — dispara João, sorrindo. — Vai por mim. Digo por experiência própria. Ou... experiências.
Meu estômago se revira.
Carol se vira e dá um tapa no peito de João.
— Que foi? — pergunta ele, fingindo surpresa.
— Cala a boca — vocifera ela.
Fico parada, em silêncio, presa naquela animosidade que vem de outras épocas, quando eu nem estava por aqui. Assim fica difícil entender o que está rolando. Para ser bem sincera, eu nem sequer entendo coisas que aconteceram desde que cheguei. Essas semanas de férias com Carol se esticam como uma mola que me leva para longe dela e depois me traz para perto outra vez.
Beatriz revira os olhos como se não tivesse provocado todo aquele drama. Depois fecha a bebida e pega uma garrafa de água.
— Agora vamos para o próximo passo — diz Beatriz.
— Essa parte eu conheço — anuncia João.
João avança com um isqueiro em mãos e, antes que Beatriz possa impedi-lo, ele acende uma chama sobre o cubo de açúcar embebido em absinto.
— Joãozinho! Ficou maluco? — grita Beatriz.
O copo começa a pegar fogo. Beatriz se afasta depressa, e por um triz sua franja não se incendeia, mas o movimento brusco faz com que seu pé esbarre no copo em chamas, que cai no chão e sai rolando até a pilha de feno.
— Merda! — solto, em pânico.
Pego uma manta para selas que estava por perto e jogo em cima do copo, pisoteando com força. Em alguns minutos, a fumaça e o fogo cessam.
— Imbecil! — exclama Beatriz, descendo da mesa e passando por João com um empurrão.
— Me disseram que era assim! — explica João.
Beatriz ergue a manta para se certicar de que o copo realmente não está mais em chamas.
— Primeiro: não, não é assim. E, segundo, mesmo que fosse , não se mistura fogo e álcool na droga de um celeiro . Você podia ter incendiado esse lugar. Pensa um pouco, seu idiota. Para de fazer gracinhas para impressionar sua namoradinha.
— Eu não sou na... — começa Carol.
— Cara, eu não dou a mínima — interrompe Beatriz, olhando para Carol como se estivesse emanando irritação pelos poros. — Olha, eu aposto que ele vai ser uma daquelas coisas das quais você vai se arrepender amargamente no futuro.
— Achei que você não desse a mínima — retruca Carol, pegando João pela mão. — Vem. Vamos dançar.
Carol arrasta João para longe como se eu não estivesse aqui, como se ela não enxergasse nada ao redor e se importasse apenas em provar um ponto para Beatriz. Observo os dois se afastando, se juntando aos outros casais no meio do celeiro. Lá, o ar está repleto de fumaça, cheiro de cerveja e suor, misturados a nada além de corpos dançando e batidas pulsantes. Consigo ver Carol grudar o corpo no de João e ele abrir um sorriso, segurando-a pelo quadril como se tivesse acabado de ganhar um prêmio depois de se comportar como um babaca de carteirinha.
— Não acredito que ela ainda está com esse cara — diz Beatriz, atrás de mim. — Ele aterrorizava meu irmão mais novo no ensino fundamental. Faz bullying com todo mundo.
— Acho que eles não estão... — Hesito, porque ainda não sei se é verdade.
Tentar entender Carol é como segurar areia: você pode achar que conseguiu, mas de repente ela escapa pelos seus dedos.
— Acho que eles terminaram — digo, por fim. — Mas...
Dou de ombros.
Eles ainda estão dançando. Alguém dá um copo vermelho para Carol, e ela o segura em uma das mãos, bebendo a cerveja e se balançando no ritmo da música. O outro braço está em torno do pescoço de João, como se quisesse se pendurar nele.
— Por que é sempre tão difícil terminar com idiotas? — indaga Beatriz, baixinho, aparentemente falando consigo mesma.
Então ela encosta no meu braço e, quando me viro, Beatriz me entrega o copo que ainda estava com absinto.
— Toma — oferece ela. — Você merece. Sabe, depois de salvar a gente de um incêndio.
— Obrigada — digo, pegando o copo.
A bebida tem cheiro de plantas e de alcaçuz preto, e o sabor é exatamente esse. Faço uma careta depois do pequeno gole que dou. É mais ou menos como eu imaginaria o sabor de uma oresta no inverno: neve na ponta da língua com um gosto de ervas. Tusso e não bebo o restante, torcendo para que Beatriz não perceba.
— É bom ficar de olho nele — murmura Beatriz, chegando mais perto para que eu ouça bem.
Ergo a sobrancelha, mas fico em silêncio. Apenas espero.
— Caras como ele, valentões, acabam sendo uma ameaça para todo mundo — avisa ela, com um tom que me dá um calafrio.
— O que aconteceu com seu irmão? O que João não deixava em paz?
— Ele foi morar com meu pai para poder trocar de escola — responde Beatriz.
— É sério?
João ainda está colado em Carol, mas agora ela se virou em nossa direção e está olhando para a gente. Percebo, ficando vermelha, que eu e Beatriz estamos muito perto uma da outra.
— Como eu falei, valentões como ele são uma ameaça para todo mundo — repete ela, recuperando minha atenção. — Ainda mais para quem eles enxergam como pessoas mais fracas... mesmo que essas pessoas sejam... namoradas. Carol devia tomar cuidado. E, se você for amiga dela, devia ficar de olho nela.
— Pode deixar.
— Logo, logo ela vai ser obrigada a sair da bolha — diz Beatriz, tão baixinho que mal consigo ouvir.
— O quê?
— Nada — responde ela, voltando a sorrir. — Vou procurar meus amigos. E você devia ir atrás de Carol antes que ele vá.
Beatriz aponta para a porta do celeiro com um aceno de cabeça, e eu olho bem a tempo de ver Carol saindo.
— Eu...
Beatriz sai antes que eu consiga entender o que está acontecendo e, de repente, me vejo andando. Vou abrindo caminho entre as pessoas até chegar à porta e sair para o ar fresco. Respiro fundo, enchendo os pulmões de ar. No céu, as estrelas têm um brilho muito intenso. Como não existe poluição luminosa nessa cidade, é possível ver estrelas que eu nem sabia que existiam. Às vezes sinto vontade de me sentar na varanda da casa de Curtis com um cobertor e uma caneca de chocolate quente para tentar contá-las.
Carol não está do lado de fora do celeiro, então dou a volta no lugar e a encontro encostada em uma parede, mexendo na bolsa.
— O que você veio fazer aqui? — pergunto.
— Precisava respirar um pouco — murmura ela, vasculhando os bolsos. — Segura para mim?
Carol me entrega a bolsa pequena e pega um isqueiro e um cigarro, que acende e depois leva à boca, tragando profundamente. Ela sopra a fumaça depressa, tosse um pouco e passa o cigarro para mim.
Quando levo o filtro à boca, percebo que ficou molhado com a saliva dela. Tento não pensar que minha boca está onde os lábios dela estiveram segundos antes. Será que isso é tudo? Nossas bocas se tocando indiretamente, por meio de um cigarro compartilhado? Carol me observa como se estivesse pensando na mesma coisa, e de repente, parece inevitável que nossas mentes façam a conexão que nossos corpos não podem fazer.
Não podem... certo?
— Jurava que você ia ficar com a Beatriz lá dentro — declara Carol, num tom de voz frio e afiado como uma lâmina.
Ergo a sobrancelha.
— Ela parece ser legal.
— Hum — diz Carol, dando de ombros e pegando o cigarro de volta.
A música alta lá dentro faz vibrar a parede do celeiro em que estamos encostadas.
— Vocês duas competiam?
— É o que ela pensa. Mas é difícil chamar de competição quando a única que ganhava era eu.
— Uau, que modesta.
— É só um fato.
— Parece que ela tira você do sério.
Carol dá uma longa tragada no cigarro. Desse jeito o filtro vai ficar molhado demais. Alguém precisa ensinar Carol a fumar.
— É melhor tomar cuidado com a Beatriz— aconselha ela, por fim.
— Como assim?
— As pessoas comentam algumas coisas sobre ela.
Olho para Carol, e ela me encara como se eu devesse saber ao que ela está se referindo.
— Você vai ter que explicar melhor.
— Sabe... Ela era muito próxima de uma outra líder de torcida antes de se formar.
Parece que estou me afogando. A maneira como Carol baixa a voz e chega mais perto para falar, como se aquele fosse um segredo terrível. E talvez até seja, mas deveria ser? Não podia ser simples? Aquele sentimento...
Nossa, o desejo que sinto por Carol é simples, muito simples. É uma atração magnética, e eu não quero resistir.
— Não gosto de fazer fofoca sobre coisas assim — respondo, com um tom brusco.
Carol endireita a postura, como se tivesse levado um choque.
— Não?
— Não, a menos que a própria pessoa fale sobre isso. A menos que a pessoa tenha saído do armário .
— Mas nem se for só pela fofoca? — pergunta Carol. — Não tem nada de errado em ficar curiosa. Ou, sei lá, em querer saber.
— A gente tem que respeitar a outra pessoa — respondo com firmeza, como se eu tivesse alguma ideia do que estou falando.
Mas não tenho. Só quero cair fora dessa conversa e me esquecer da expressão no rosto de Carol, como se até a ideia de um relacionamento entre duas garotas fosse impensável.
Sei como ela fica quando está fingindo, mas não sei bem se ela está fingindo agora.
— Você e João parecem estar se divertindo — comento, desesperada para mudar de assunto e sem conseguir tirar da cabeça toda a conversa sobre bullying com Beatriz.
Não consigo parar de pensar nisso. Deve ter sido algo muito grave para que o irmão dela precisasse mudar de escola . Como Carol reagiria se eu dissesse que João pratica bullying por aí? Acho que já sei, e é por isso que não digo nada.
— É. Você sabe como ele é — diz ela.
— Estou começando a descobrir, infelizmente. Carol traga de novo e depois sopra a fumaça. — Ele não é tão babaca.
— Hum...
— Tá, beleza. Ele é, sim. Às vezes.
— Quase sempre, pelo visto.
— É só o jeito dele.
— Então esse jeito precisa mudar — rebato.
Ela me encara por tanto tempo que chego a pensar que ultrapassei algum limite. Então Carol dá uma risada sombria.
— Priscila, garotos não mudam — diz ela. — As garotas ficam achando que, se eles nos amam, vão mudar. Mas na verdade o que acontece é que as garotas precisam mudar para que eles continuem amando a gente.
Pego o cigarro e dou algumas tragadas antes de responder. — Você não se esqueceu de nada?
— Como assim? — rebate ela.
— Faltou a parte sobre você amar o garoto.
Carol empalidece, como se todo o sangue de seu rosto tivesse evaporado. Ela pega o cigarro da minha mão e o joga no chão, depois o pisoteia com o sapato.
— Amor é sacrifício — diz ela. — É o que minha mãe fala. E todos os casais que conheço que deram certo também...
Os olhos dela ardem com o turbilhão emocional que provoquei sem querer.
— Você acha que é fácil? Amar alguém? — pergunta ela.
— Acho que o amor pode ser um milhão de coisas diferentes, mas, acima de tudo, não acho que se diminuir por alguém vale a pena. Nunca.
— Mas João não fa...
— Não sou eu que estou mencionando ele — interrompo. — É você.
A luz que vem do celeiro ilumina o rosto de Carol quando ela ruboriza.
— Você é uma...
As palavras dela são abafadas pelo ruído agudo de um microfone. Logo depois, o barulho cessa de repente, e tudo fica em silêncio.
— Os vizinhos deduraram a gente por causa do barulho — grita alguém. — A polícia tá vindo.
— Corre! — grita outra pessoa.
Bam! A porta do celeiro, a cerca de um metro e meio de onde estou, se escancara, e todo mundo começa a correr em direção aos carros.
— Merda! — diz Carol.
Seguro a mão dela.
— Que droga. Para onde a gente vai? — pergunto. — Precisamos encontrar o resto do pessoal!
Carol começa a correr em direção à porta principal e me arrasta com ela conforme mais pessoas continuam a sair pelas portas dos fundos. Abrimos caminho entre um grupo imenso que está fugindo e quase caio quando alguém esbarra em meu ombro.
— Priscila! — chama Carol.
Ela puxa meu corpo para perto do dela e me segura pela cintura.
— Fica perto de mim! — pede ela.
Entramos no celeiro, que agora está quase vazio. Sinto meu coração disparar.
Finalmente avistamos Allan.
— Até que enfim achei vocês! — diz ele, indo até nós, com Collen ao lado. — Alguém viu o João?
Carol balança a cabeça.
— E a Malu? — pergunta ela.
— Faz um tempo que ela sumiu — responde Collen. — Estava com um garoto.
— Por que você não falou com ela? — grita Carol.
— Ei! — diz João, aparecendo do nada. — Temos que dar o fora.
— A gente não sabe onde a Malu está — explico. João dá de ombros.
— Que pena. Vamos.
O resto do grupo se entreolha.
— Meu carro é a única alternativa de vocês — lembra João, sacudindo a chave na altura do rosto. — Não vou ficar aqui para tomar uma dura da polícia.
— Se Malu se meter em problemas... — começa Allan.
— Que se dane — rebate Carol, furiosa, arrancando as chaves da mão de João, que não tem tempo de reagir. — Você me fez deixar Malu para trás naquela festa e o segurança quase pegou ela. Não vou fazer isso de novo. Malu!
Carol coloca as mãos em concha ao redor da boca e chama pela amiga. Em seguida, dá instruções:
— Allan, vai lá para fora com o João para procurar a Malu. Collen, dá a volta e vai pela frente. Vou procurar no depósito.
Eles se separam, e eu fico ali, perdida, o celeiro cada vez mais vazio.
Começo a andar pelo corredor de estábulos enquanto Carol grita por Malu perto dos depósitos.
— Malu? — chamo também, espiando dentro de um dos estábulos que parece ter mais feno do que os outros.
— Priscila — chama uma voz, baixinho. Eu me viro em direção ao som.
— Malu?
Paro diante do estábulo e escancaro a porta. Malu está agachada com os braços cruzados diante do corpo; ela está sem blusa, só de sutiã e calça jeans.
— Você está bem? — pergunto, preocupada. — Cadê sua blusa?
— Eu estava com um cara... a gente estava se beijando. Ele estava com a minha blusa na mão quando as pessoas começaram a gritar. Ele saiu correndo e eu meio que congelei.
— Caramba.
Tiro minha jaqueta e depois a blusa, que entrego para Malu.
— Ai, obrigada, Priscila — diz ela.
Coloco a jaqueta de volta e a abotoo até o pescoço enquanto Malu se veste.
— Precisamos ir antes que a polícia chegue — explico. — Pessoal! Malu está aqui! — grito da porta do estábulo.
Carol desce do depósito de feno no segundo andar.
— Você está bem? — pergunta ela.
— Priscila me salvou — diz Malu.
— Galera! — grita Carol em direção à porta dos fundos. — Encontramos ela! Vamos embora.
Disparamos em direção à porta principal do celeiro bem no momento em que luzes azuis e vermelhas aparecem na estrada.
— Não dá mais tempo. Temos que sair por trás! — grito.
— Mas o carro está do outro lado! — protesta João.
— Cala a boca e corre! — vocifera Carol, pegando minha mão e correndo assim que as sirenes começam a soar.
Todos nós saímos por trás. Não consigo ver nada conforme avançamos a toda velocidade pela oresta. O gramado chicoteia meu calcanhar e meu tornozelo, meus sentidos cada vez mais caóticos, e sinto o coração disparado em meus ouvidos. Minha mão ainda está na de Carol. Quando tropeço, ela me segura e
me puxa para continuarmos correndo. Meus pulmões ardem quando tento puxar o ar, e as luzes dançam atrás de nós.
— A gente tem que se esconder — diz Collen, ofegante.
— Viemos parar num pedaço descampado — diz João com um grunhido. — Que ótima ideia, Priscila. Parabéns.
O som das sirenes está cada vez mais alto. Estreito os olhos, olhando em volta na escuridão.
— Ali! — Aponto para uma ladeira escura no fim do campo. — Vai! Vai!
Saímos correndo, e meus tênis derrapam na terra escorregadia. Um por um, descemos o barranco e vamos parar em um lamaçal cheio de plantas e com água batendo nos joelhos em alguns pontos. Estamos fora de vista.
Dou uma olhada por cima da ladeira e vejo feixes de luz vindos de lanternas usadas para inspecionar o terreno. Eu me abaixo depressa quando uma das lanternas é apontada em nossa direção.
— A gente só tem que ficar aqui até eles irem embora — sussurro. — E depois podemos ir até o carro.
— Se eles acharem a gente... — murmura João.
— Cara, fica quieto — intervém Allan, exasperado.
João Gil nalmente cala a boca.
Ficamos ali, escondidos e em silêncio, com a sensação de que vamos ter que prender a respiração para sempre. Por fim, as luzes somem e a sirene cessa. Saímos do buraco, cheios de lama e cobertos de sabe-se lá o quê.
— Eu avisei que ficar em casa era uma ideia melhor — resmunga Collen.
Atravessamos o gramado, indo até onde estacionamos o carro.
— Beleza, foi mal por ter tentado agitar um pouco as coisas — diz Allan quando chegamos.
— Me dá as chaves — pede João.
— Quanto você bebeu? — pergunta Carol.
— Você tá de brincadeira, né? — A voz dele falha, e sua expressão vai de irritado a furioso numa fração de segundo.
— Ei, ei — diz Allan, colocando-se entre os dois. — Calma, cara. Você bebeu bastante, mas eu não bebi nada. Deixa que eu dirijo, beleza?
— Contanto que seja você e não a inútil que roubou minhas chaves.
— Não fala assim com ela — repreendo.
Os três — não, na verdade os cinco — olham para mim.
— O que foi que você... — começa João.
Carol o interrompe.
— Eita, Priscila, o que é isso?
— O quê? — pergunto.
Sigo o olhar de Carol e percebo que tem algumas folhinhas presas na barra da minha calça. Eu me abaixo para tocá-las.
— Não! — gritam Carol, Malu e Allan ao mesmo tempo.
— Que foi, caramba? — indago, imóvel.
— É urtiga — explica Carol.
Ela cobre a mão com a manga da blusa e se abaixa para tirar as folhas da minha calça.
— Que merda, ali devia ter um monte — reclama ela, olhando para a própria mão. — A gente está cheio disso.
— Tá falando sério? — esbraveja João. — Isso é culpa sua! — grita ele, se dirigindo a mim. — Foi você quem mandou a gente ir para lá.
— Como eu ia saber? Nem sei como é uma folha de urtiga!
— Ficar com coceira é muito melhor do que ser preso — lembra Carol.
— É só passar uma pomada — comenta Malu. — Se não tiverem, é só comprar na farmácia.
— Inacreditável — resmunga João.
— Tanto faz, a gente tem que ir — diz Allan. — Carol, cadê as chaves?
Ela joga as chaves para Allan e nós entramos no carro, disparando pela noite escura.
— Você pode tomar banho lá em casa — diz Carol para mim, sorrindo como se fosse uma ótima ideia.
O carro mergulha em um silêncio exausto e embriagado.
Eu me obrigo a sorrir também, mas tudo em que consigo pensar é: Droga, eu nunca vou conseguir tirar a roupa sabendo que você está do outro lado da porta.

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