— Tem certeza? — pergunto, olhando desconfiada para o brilho labial na mão de Carol.
— Você não confia em mim? — indaga ela, fazendo biquinho.
— Depois do "Verdade ou consequência"? — retruco, arqueando as sobrancelhas.
Ela bufa.
— Isso só aproximou a gente, meu amor.
Ela dá uma piscadinha, e meu coração quase sai pela boca. Ela também chama as outras amigas de "amor". Já a vi falando assim nos comentários do LiveJournal. Não é especial, ainda que essa seja a sensação.
Tento me concentrar no brilho labial, e não em como Carol está perto de mim. Porque ela está muito perto. Eu consigo até sentir o cheirinho do xampu floral que ela usa, além de todo o resto: hidratante, perfume e o brilho labial avermelhado com aroma de laranja que ela passou na boca com uma precisão incrível antes de tirar outro tubo da bolsa para me entregar.
Carol é um turbilhão de fragrâncias, humores e sorrisos, e algumas vezes tenho a impressão de que já a conheço. Depois de duas semanas passando o tempo todo juntas, eu praticamente tenho certeza disso. Mas aí, do nada, ela faz ou diz alguma coisa que me faz pensar: Caramba, não, eu não te conheço nem um pouco. Mas quero muito.
Nossa, como eu quero.
— Ainda acho que essa cor é escura demais para mim — digo.
— E eu acho que você devia ficar quieta e fazer o que eu digo — responde ela. — Já percebi que você nunca usa maquiagem. Não que eu possa te culpar. Se eu tivesse esse rostinho lindo também não usaria!
Carol dá um toque de leve no meu nariz, e é como se todas as sensações de meu corpo se reunissem naquele único pedacinho de pele.
— Vou ficar meio gótica. Sei lá — protesto, de novo.
Então ela segura meu queixo e, de repente, não consigo me mexer. Fico congelada, observando os olhos dela nos meus. A surpresa no olhar de Carol demonstra que não sou a única a sentir aquilo. Não sou. Não é coisa da minha cabeça.
Bastaria que eu me inclinasse um pouquinho para a frente se quisesse descobrir o sabor do brilho labial dela. Passo os dedos pelos cabelos cor de mel de Carol, tomada pela vontade de descobrir se são tão macios quanto imagino. Carol parece tão suave às vezes, mesmo quando está na defensiva. À noite, antes de dormir, toco minhas mãos para evocar a lembrança dela, um feitiço que a traria até mim.
— Não se mexa — pede ela.
Quando a voz de Carol falha, fico completamente desestabilizada. Será que isso signica alguma coisa? Ou será que a garganta dela só está seca? Será que ela precisa tomar água?
Faço o que ela diz. Ela passa o brilho labial na minha boca, e a substância grudenta faz cócegas, mas eu tento não me mexer quando o olhar dela vai dos meus olhos para minha boca, como se estivéssemos em um barco oscilante, navegando não ao sabor das águas, mas conforme o nosso ritmo.
— Feche os olhos — pede ela quando termina de passar o gloss.
Carol começa a passar maquiagem em meus olhos. Eu me esforço para mantê-los fechados enquanto ela desliza o pincel da sombra em minhas pálpebras.
— Você não inverteu o processo? — questiono. — Achei que os olhos viessem primeiro e a boca só depois.
Quase consigo ouvi-la dando de ombros.
— Para falar a verdade, não sei muito bem — responde Carol. — Não estou acostumada a passar maquiagem em outras pessoas.
— Quer dizer que sou especial?
Ainda estou de olhos fechados, então não consigo ver a expressão de Carol. Mas a pausa... é suficiente.
— Aham — concorda ela, baixinho.
Ela termina de passar sombra, parte para o rímel e finaliza com um blush cremoso nas minhas bochechas. Recuo involuntariamente quando ela se aproxima com um curvador de cílios.
— Eu posso fazer — digo, pegando o objeto da mão dela.
Carol sorri.
— Está com medo de eu arrancar seus cílios?
— Tenho quase certeza de que esse é um método de tortura — respondo, usando o curvador bem depressa.
— Acho que você está confundindo com arrancar unhas.
Sinto um arrepio só de pensar nisso.
— Eca. Não consigo nem imaginar como isso deve doer.
— Muito mais do que arrancar cílios — diz ela.
— Você nunca arrancou os seus para saber.
— Você já? — rebate Carol.
— Por que acha que não uso maquiagem?
Carol me encara, incrédula, e eu sustento o olhar com uma expressão impassível.
— Você está zoando!
— Alguém tem que deixar você alerta — digo. — Malu me deixa alerta. Às vezes.
— Ela vai hoje? — indago.
— Aham, todo mundo vai — responde Carol. — Malu, João e Collen. Allan conseguiu os convites para todo mundo. A gente não é muito de se reunir nessas áreas mais afastadas, sabe?
— Não, não sei — respondo. — Saí com seus amigos uma vez só, e muito rápido.
Carol olha para baixo, e percebo que suas bochechas ficaram coradas. Será que ela se sente culpada? Ou será que acabou de perceber que nós duas não passamos um dia sequer separadas há semanas?
— Como Allan conseguiu o convite? — pergunto.
— Ah, ele conhece todo mundo — responde Carol. — Ele é tipo um labrador humano, fala com todo mundo. Você sabe.
— Não, não sei — insisto.
Ela franze a testa.
— Você está sendo meio babaca.
O rompante de irritação acerta meu peito em cheio.
— Estou?
— Eles não são pessoas ruins — diz Carol antes que eu possa perguntar mais.
— Eu não disse que são.
— Mas é o que está pensando.
Bufando, ela pega o próprio tubo de brilho labial e se aproxima do espelho para passar mais uma camada.
— Não sabia que você lê mentes — comento. — Dá para ficar rica com isso.
Ela bufa de novo, mas dessa vez é mais parecido com uma risada.
— Muito babaca — murmura ela, sorrindo e fechando a tampa do brilho labial. — Sorte a sua que gosto de você.
Estou prestes a retrucar, mas minha resposta evapora quando ela joga a maquiagem sobre a cômoda e... tira a blusa, caminhando em direção ao guarda-roupas.
Sinto meu corpo inteiro ficar quente. Ouço um zumbido nos ouvidos, e meus dedos começam a formigar, como se fossem ímãs atraídos pela pele dela. Cerro o punho, enterrando as unhas nas palmas das mãos e deixando marcas que servirão de lembretes deste momento. Lembretes desnecessários, porque eu jamais vou me esquecer disso.
— Ouvi dizer que vai ter absinto na festa — diz Carol, inclinando-se para vasculhar o guarda-roupas.
Ela está de cabelo solto, que cai até sua cintura. Eu me perco na cena, me lembrando da sensação agradável de cócegas que a ponta do cabelo dela fez em meus braços.
— Absinto? — repito, sem conseguir me concentrar.
Ela não vai colocar uma blusa? Será que eu quero que ela coloque?
— A bebida, sabe? Fada verde. Fala sério, Priscila, como você não sabe...
— É óbvio que eu sei o que é absinto — interrompo depressa. Meu rosto não poderia estar mais quente. — Destilado verde feito à base de anis. As pessoas tomam com cubos de açúcar.
Carol pega um suéter listrado do cabide e o veste. — Você já experimentou? — pergunta ela. Balanço a cabeça.
— Só fui a festas com vodca e cerveja.
— Sempre quis experimentar — diz ela, com um ar travesso.
— Já sei. Por causa do filme Moulin Rouge ?
Ela ri.
— Por que você é a única que entende minhas referências?
Meu rosto dói de tanto tentar segurar um sorriso. Não posso ser transparente. Não posso.
— Acho que é sorte. Carol se vira para mim. — O que acha?
O suéter de tricô deixa um de seus ombros à mostra, e é bem ali que meus olhos pousam. Não consigo evitar. E talvez, mas só talvez, ela tenha percebido, porque Carol está me encarando fixamente quando ergo o olhar.
Ela está do lado oposto do cômodo, mas me observa de um jeito que faz parecer que estamos a centímetros de distância.
— Priscila — diz ela.
Nos lábios de Carol, meu nome soa diferente. É bonito e harmonioso.
— Oi.
— O que acha? — pergunta ela, dando uma voltinha. — Sexy?
— Você está muito bonita.
Ela faz beicinho. Sua boca está brilhante. — Não foi o que perguntei.
Não sei o que dizer. Porque é óbvio que ela está perfeita. Linda, sexy e muito desejável. Mas não posso dizer nada disso. Se eu disser, as coisas vão ficar muito escancaradas. Ela vai saber.
As coisas com Carol são como uma gangorra: nunca sei quando vamos estar no alto, porque tudo está em constante mudança.
— Para quem você está se arrumando tanto? — pergunto. Ela coloca o cabelo atrás da orelha, distraída.
— Ah... Todo mundo vai estar lá.
— Tipo o João?
Eu precisava perguntar. Todas as vezes em que falei sobre ele, Carol deu um jeito de mudar de assunto. Eu estava morrendo de curiosidade. Eles já tiveram algo, mas ela nunca me contou o quê.
João olha para Carol como se tivesse algum direito sobre ela, como se ela fosse dele e de mais ninguém. Não gosto disso, mas parte de mim se pergunta se Carol gosta.
— Talvez — responde ela, fechando a porta do guarda- roupas para poder se olhar no espelho.
Ela pendurou várias fotos e cartões-postais na moldura do espelho. Entre eles, vejo meu post-it amarelo, aquele que escrevi no primeiro dia em que estive aqui. Ela o guardou e depois o colocou ali, entre um cartão-postal antigo e uma foto da praia em preto e branco.
Quando ela se vira de costas para dar uma olhada na própria bunda no espelho, preciso me forçar a encarar o teto e respirar fundo. Isso é muito pior do que arrancar os cílios.
— Você e João...? — começo.
Hesito. Ela para de se olhar no espelho e me encara. — O quê?
— Você sabe.
Eu sou patética. Nem sequer consigo dizer as palavras. — Não. Na verdade, não sei — responde ela.
Fico em silêncio. Ela está fazendo um joguinho comigo. Sei que sim. E odeio isso. Só quero saber quem você é de verdade. O que você quer? Do que você precisa? O que você realmente deseja, Carol?
— Namorar é coisa do passado, Priscila — diz ela, o que nem de longe é uma resposta. — Estou emocionalmente indisponível para todo mundo na mesma proporção.
E isso é muito a cara dela, não é? Uma garota feita de muitas perguntas e quase nenhuma resposta.
— Que seja.
Eu me aproximo do espelho e dou um beijo no vidro, deixando o desenho vermelho-escuro da minha boca marcado bem ao lado do post-it.
— Prontinho. Perfeito.
Carol está me encarando quando olho para ela.
— Está pronta? — indago, quase como se estivesse a desafiando nesse nosso jogo de verdade ou consequência.Também sei dançar conforme a música.
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EAE GENTE GOSTARAM?
Agradeço se puderem me ajudar, deixando sua estrela e seu comentário.
Prometo que vou tentar trazer mais capítulos para vcs!
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A Garota
RomancePricila Caliari sente que não é a mesma desde a morte da mãe. Forçada a morar no interior do Oregon com o pai que abandonou a família, a garota se vê sozinha em um lugar desconhecido e conservador. Não parece o melhor momento para abrir seu coração...