Entro de mansinho em casa, ensopada da cabeça aos pés, rezando para não dar de cara com Curtis. Mas, para meu azar, ele chegou mais cedo do trabalho e está na sala de estar.
Ele parece preocupado, o que me deixa nervosa. Ainda não saquei qual é a dele.
Durante boa parte da minha vida, Curtis foi apenas o cara de jaqueta de couro na única foto dele que minha mãe guardou para me mostrar. Na imagem em preto e branco, ele está misterioso de um jeito descolado, como se tivesse saído de um ensaio de revista. Curtis sorri para a câmera com um cigarro pendurado na boca. Pela expressão em seu rosto, parecia amar muito a pessoa que tirou a foto.
Foi assim que Curtis ficou congelado na minha memória, em uma imagem monocromática, com jaqueta vintage de couro; mais como uma ideia do que como uma pessoa propriamente dita. E agora percebo que ele é de fato uma pessoa, e talvez eu seja uma pessoa para ele também. Não somos mais possibilidades, e isso é uma droga. Não sei como lidar com isso. Acho que não consigo amar Curtis. Não sei como fazer isso. Eu mal o conheço.
Ele fica de pé e me encara. Meu cabelo está escorrendo e, pelo jeito, meus tênis vão demorar uns dois dias para secar.
— O que aconteceu? — pergunta ele, apreensivo.
— Fui dar um mergulho no lago — respondo.
Passo pelas guitarras penduradas nas paredes do corredor, deixando poças d'água pela casa toda.
— Espere aí! — protesta ele, indo atrás de mim. — Pri, você está bem?
Olho para ele e tento não me sentir humilhada, mas falho drasticamente na missão.
— Fiz o que você pediu. Fui fazer amigos. Agora preciso muito tomar um banho, beleza?
Antes de escutar uma resposta, entro no banheiro e fecho a porta com força suciente para encerrar o assunto. Pelo menos Curtis não vai me incomodar aqui dentro.
Abro o chuveiro, e o vapor da água quente inunda o banheiro enquanto tiro meus sapatos, meias e calça jeans. Assaduras nas coxas por atrito de jeans molhado é algo que não desejo nem para meu pior inimigo. Bem, talvez para João. Se ele estiver com assaduras como as minhas, talvez exista algum tipo de justiça divina no mundo. Mas, infelizmente, duvido muito.
Tiro a regata e, ao me ver ali, de calcinha e sutiã em um banheiro que obviamente é de um homem, percebo o que aconteceu. Tem um borrão de tinta no meu braço.
— Não, não, não, não, não!
O telefone e o nome de usuário que Carol escreveu agora não passam de uma mancha ilegível. Devo ter encostado o braço nas roupas molhadas enquanto voltava para casa.
— Merda!
Viro o braço em um ângulo diferente para analisar o rabisco sob outra iluminação, mas já era. As letras e os números não passam de uma mancha escura na minha pele.
Eu me sento na beirada da banheira, sentindo um punho se fechando em volta do meu coração.
— Merda — repito, tentando engolir o choro.
Mas que besteira, né? Posso fazer amigos quando as aulas voltarem em agosto. Ou posso continuar na minha. Não preciso de...
Não preciso de nada. Nem de ninguém. Não mais.
Não mesmo.
******
Quando acordo na manhã seguinte, a primeira coisa que vejo é o caderno em cima da minha barriga. Foram quatro páginas rabiscando combinações de números e possíveis nomes de usuário, tentando lembrar o que Carol tinha escrito no meu braço.
Pois é. Não desisti de tentar lembrar mesmo depois de ver que tinha borrado tudo. Que patético.
É que...
Sei lá.
Conversando com ela, eu meio que esqueci por um segundo que as coisas não são terríveis o tempo todo.
Mas não quero me esquecer de tudo. Não quero esquecer minha mãe.
As pessoas precisam esquecer algumas coisas para seguir em frente, caso contrário passarão a vida assombrada pelos próprios traumas. Não entendia isso antes — se entendesse, talvez tivesse conseguido ajudar minha mãe —, mas agora consigo compreender. Sei também que não vou conseguir fugir de alguns pensamentos. Estou tentando aprender a viver em meio a tudo isso, mas é muito difícil.
Tudo ficou difícil demais depois daquele dia.
— Pri?
Levo um susto e jogo o caderno na montanha de roupa de cama. Curtis abre a porta devagar e espia dentro do meu quarto.
— Já acordou?
— O que você acha? — respondo, gesticulando para mim mesma.
Curtis não sabe. Não tem a menor ideia de que eu estava prestes a desabar, bem ali, enrolada no edredom que minha mãe me deu quando eu tinha treze anos. Ele não me conhece bem o suciente para enxergar os sinais. Ele nunca nem tentou me conhecer.
— Fiz café, se você quiser.
Franzo o cenho.
— Pensei que café atrapalhasse meu crescimento.
— Como você disse, talvez você já tenha crescido o que tinha para crescer.
Curtis dá de ombros e vai embora.
Eu me arrasto para fora da cama e troco de roupa, prestando atenção na barulheira na cozinha. Quando passa das nove da manhã e ele continua em casa, deduzo que deve estar de folga.
A vontade de tomar café acaba sendo maior do que a de ficar sozinha, então vou até a cozinha e despejo um pouco numa caneca. Curtis está encostado no balcão, tomando café também.
— O que vai fazer hoje? — pergunta ele. — Hum...
— Pensei que nós podíamos...
Ah, não. O famoso "nós". Não existe "nós". Ele existe, eu existo, e é isso. Existimos separadamente. Fim.
— Vou desempacotar minhas coisas — respondo, depressa, antes que ele termine a frase.
Qualquer coisa para fugir de planos que envolvam a companhia dele.
— E se eu ajudar você? — sugere ele.
Pensar em Curtis mexendo em minhas coisas me dá um calafrio.
— Não! Não precisa, sério. Eu faço sozinha. Eu só...
Olho em volta e vejo um pacote de batatinhas em cima do balcão.
Pego o pacote e continuo:
— Eu só precisava de um pouco de sustância. Sabe como é. Para ter energia.
Saio depressa da cozinha com o café e as batatinhas sabor sal e vinagre nas mãos. Não gosto desse sabor, o que eu estava pensando? Mas agora vou ser obrigada a fazer o que eu disse que ia fazer. Devia ter dito que ia sair ou algo assim, mas não é como se eu tivesse para onde ir ou tivesse o que fazer. Talvez fosse diferente se eu não tivesse perdido o número de Carol. Sinto um nó na garganta toda vez que penso nisso, por mais que eu tente me convencer de que não me importo.
Eu me tranco no quarto e fecho as cortinas para aumentar ainda mais a sensação de caverna. Parece errado deixar a luz do sol entrar enquanto desempacoto uma vida que nunca mais vou ter de volta.
A primeira caixa está pesada, então deve ter livros. Não sei por que trouxe meus antigos livros da escola; talvez porque a ideia de me desfazer de objetos enquanto tentava fazer minha vida caber em quinze caixas tenha sido difícil demais. Agora vejo que foi uma decisão idiota. Por que raios eu precisaria de um livro de História velho?
Tiro tudo do caminho e coloco uma pequena pilha de livros sobre a mesa de cabeceira. Vi alguns blocos de concreto no quintal; se eu conseguir arranjar algumas placas de madeira ou coisa parecida, posso fazer uma estante. Não quero pedir nada que não seja essencial para Curtis. Preciso lembrar que ele não é esse tipo de cara; ele só apareceu quando a pior coisa possível aconteceu. Então só posso esperar algo dele em momentos críticos.
Pego a segunda caixa. É mais leve e é justamente a que mais ocupa espaço no quarto. Na lateral, está escrito "ROUPAS" .
Tenho usado apenas as poucas peças que enfiei na mala, então até que é legal rever as minhas coisas, como, por exemplo, o coelhinho de quimono cor-de-rosa que ganhei da minha avó.
Pego também meu All Star preto favorito, minha blusa cinza que é três vezes maior do que meu tamanho e mais confortável do que qualquer outra roupa do universo, e todas as minhas regatas, que apareceram em boa hora, já que aqui é tão quente quanto a Califórnia — e abafado também, para piorar a situação. Tiro mais algumas roupas da caixa, e lá está ela, dobrada entre um pijama e um moletom: uma jaqueta jeans clássica da Levi's, que foi usada até ficar molinha e confortável por uma mulher que amou muito e viveu muito.
Era o que ela sempre me dizia. É preciso amar muito e viver muito, Pri.
Pego a jaqueta e pressiono o tecido contra a bochecha. Um perfume de óleo de rosas — o cheiro é fraco, mas consigo sentir — invade minhas narinas. Com os olhos ardendo, eu me sento no chão, segurando a jaqueta contra o peito da mesma forma que segurei minha mãe, e tento me acalmar.
A gente tem que esquecer algumas coisas para conseguir seguir em frente, mas não sei como fazer isso sem me esquecer dela.
Com peito e a garganta em chamas, respiro fundo, relaxo as mãos que seguravam a jaqueta e a visto. Preciso dobrar as mangas, já que minha mãe era muito mais alta do que eu, mas a jaqueta me recebe como um enorme abraço.
Encosto na penteadeira, imersa em minhas próprias lembranças, sabendo que o cheiro de rosas pode desaparecer um dia, mas a dor de perder minha mãe sempre vai estar aqui. Quero dar a volta por cima e viver a vida que minha mãe sempre sonhou... a mesma vida que ela mesma não conseguiu viver.
Mas como posso amar muito e viver muito se só consigo sentir dor?
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A Garota
RomancePricila Caliari sente que não é a mesma desde a morte da mãe. Forçada a morar no interior do Oregon com o pai que abandonou a família, a garota se vê sozinha em um lugar desconhecido e conservador. Não parece o melhor momento para abrir seu coração...