Seria poético se essa narrativa começasse com uma lembrança linda de quando tínhamos 15 anos e fomos com fantasias iguais a uma festinha de Halloween na casa de uma amiga em comum. Mas a verdade é que eu não soube como era cor real da pele dela até meus 22. Começou no improvável, no despretensioso. No quase ridículo.
As dores adolescentes são tão avassaladoras quanto aquele prendedor de roupas que estraga a mola interna e solta uma ponta do lençol limpo ao ponto de quase arrastar no chão: incomoda, mas não é o fim do mundo. Ao menos, uns 8 anos depois a gente percebe isso. A parte da amiga em comum existiu, mas foi breve e hoje nem é suficientemente relevante. E tudo começou com uma dor de adolescente, um amor não correspondido e pouquíssimo compensatório. Tenho quase certeza de que vi um sorrisinho de canto de boca no reflexo do peso de papel quando me ocorreu essa lembrança.
Eu passei quase uma hora rodando a cadeira e alternando a visão tediosa entre minha mesa e a janela do décimo quarto andar. A avenida parecia tão desinteressante, ao par de que as minhas canetas nunca pareceram tão vibrantes e polidas. Havia muito a se fazer mas era evidente a crise de atenção e prioridades. Levantei e arrastei os pés pelo assoalho, me distraindo devagar com o som abafado e macio do carpete e dos meus pensamentos intrusivos. Encostei no armário de arquivos e me perguntei quando precisaria comprar uma moldura nova, fazer um vidro maior. O espaço das rosas estava acabando e muito me animava quando precisava trocar.
O primeiro quadro teve 4 rosas: uma pra cada ano da minha vida dos quais ela fez parte. E eu queria muito romantizar e dizer que lembro perfeitamente da chegada desse quadro mas a verdade é que essa memória é bem vaga. No entanto, substituí-lo a medida que as rosas se acumulavam sempre foi um evento canônico.
Gosto de observá-lo nas temporadas em que só resta espaço suficiente pra mais uma rosa. Sempre me parece decisivo, me gera uma certa ansiedade, mas é sempre recompensada por um quadro maior, com mais espaço. Já ocorreu ao menos 4 vezes nos últimos dez anos.
A décima primeira rosa ainda tem um pouco de cor. Uma rosa chá: cresce sob a luz, precisa ser podada no inverno, floresce melhor com espaço e requer pouca manutenção, comparada a outras espécies. A definição mais assertiva pro último ano.
Eu não sou grande fã de jardinagem. Nem de longe posso dizer que tenho um dedo verde. Mas algumas flores valem o cultivo. A minha Rosa já teve milhares de fases e venho tentando cultivá-la da melhor forma possível ao longo dos anos. Já quase a matei umas duas vezes, mas ela insistiu em acreditar em mim.
Minha Rosa é linda, apesar das muitas vezes em que reguei demais. Ou das que esqueci de regar. Do calcário desnecessário que joguei em suas raízes, do tanto de pedras que pus na terra querendo enfeitá-la demais, do monte de pesticida que borrifei nela tentando protegê-la dos pulgões e que só serviu pra quase matá-la sufocada. É linda como é e por si só. Não há espécie como a dela. Nenhuma arte o no mundo seria suficiente para retratá-la. E sua intensidade não caberia numa moldura.
A primeira rosa do quadro foi uma canina, uma silva-macha. Serelepe e delicada. Do jeito que a minha Rosa chegou. E desde esse dia ela já foi imponente como a grandiflora, triste como a rubra, terna como uma rosa branca e quase sempre uma rosa-louca. Ela nasceu numa terra distante e veio pra mim numa redoma pela qual tenho zelado todos os dias. Minha Rosa assistiu toda minha vida desde o dia em que chegou. Mas vinha triste. Presa demais.
Ora, quem diria? É de se esperar essa insatisfação de um passarinho, por exemplo, não de uma rosa. Os dias se passavam e minha rosa não se alegrava. Até suas cores já não estavam mais tão vivas. Resolvi levá-la de volta pra terra onde nasceu. Como mágica a vi reascender a vontade de viver. Como se sob o mais brilhante sol de sua existência.
Fiquei ao seu lado até sentir que o solo a abraçaria com a mesma ternura que eu e então a deixei, cultivando-a de longe, por amor. O que tenho dela hoje em dia é o quadro, que pretendo preencher enquanto ela viver. Uma rosa pra cada ano das nossas vidas.
Cada rosa no quadro é uma lembrança dela. E um pedaço de mim.
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O QUE ME OCORRE NO BANHO DO FIM DO DIA
Non-FictionAs coisas podem ser um pouco mais do que parecem ser. Uma camisa pode ser uma tristeza muito profunda e uma xícara trincada, a última memória de um amor. Muito se passa diante dos nossos olhos todos os dias e pela nossa própria saúde, é importante...