O VÃO ENTRE O TREM E A PLATAFORMA

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Para sua segurança, fique atento ao vão entre o trem e a plataforma

Mind the gap between the train and the platform.


Desde criança eu tenho um medo irracional de cair. 

Eu não era de correr, ou subir nos bancos do pátio da escola. Evitava escorregadores, casinhas suspensas, trampolins e qualquer coisa muito longe do chão.

Talvez por isso me tornei uma pessoa, literalmente, pé no chão. 

Não tenho medo de aviões, mas tenho de pontes, varandas, helipontos. 

Não tenho medo de altura. Tenho medo de cair. 

Acontece que quando você chega na beira dos trinta, a sua vida vira um desencadeamento de quedas. Um trambolhão atrás do outro. 

Dia desses estava em mais uma travessia eterna de um canto da cidade pra outro, sem fones, sem paciência, sem carisma e com uma vontade incessante de estar em casa. Coisa que não seria resolvida nem quando eu saísse do trem, uma vez que minha casa estaria há 2944km. 

Estar longe de tudo com o que está acostumado facilmente te coloca em um limbo reflexivo sobre a quantidade exorbitante de nada que foi conquistada até o presente momento, ao mesmo tempo em que te abre os olhos pra sonhos nunca antes considerados. 

Tudo ao mesmo tempo. No intervalo do vão entre o trem e a plataforma. 

Percebi que estou sempre pensando em um milhão de coisas invisíveis, mas tangíveis o suficiente pra me manter distraída ao ponto de quase tropeçar na bagunça simétrica da minha própria cabeça. E como boa "estrategista de ocasião" (leia-se com sarcasmo), empilhei tudo em montinhos feios. Dividi em plataformas. E vãos.

Já faz um tempo que tenho entendido que coisas boas não duram. Ruins também não. E que o conforto do banquinho da plataforma pode parecer muito convidativo quando toca o sinal sonoro da chegada do trem e aquele meio mundo de pessoas se levanta e se amontoa na linha amarela. 

O ponto é que o trem não espera muito tempo, e dificilmente há tempo pra pensar sobre embarcar ou não. E ou você se sufoca na multidão ou espera confortavelmente no banquinho pelo próximo trem. E pelo próximo. E pelo próximo. Sentado. 

Quando achei que isso já era um conceito internalizado, me vi na plataforma vazia, de frente pra um vagão mais vazio ainda. E ainda assim eu não subi. A priori, achei que fosse pelo medo de ir a algum lugar. Pelo incômodo com a multidão na linha amarela. Ou por gostar da plataforma. Mas naquele dia, em silêncio e em uma lacuna circular, eu ouvi claramente, como um grito baixo, o alerta de embarque.

.Para sua segurança, fique atento ao vão entre o trem e a plataforma"

Mind the gap between the train and the platform."

E o vão pareceu muito maior que o que de fato é. 

Mais escuro, e mais vazio. 

Como se eu estivesse tão, tão distante do trem. O trem que não vai a lugar nenhum e que pode me levar pra qualquer lugar, em contrapartida. 

Os segundos estavam passando, e acabando. E eu estava parada entre o vão e a plataforma, com um vão duplo entre o trem e eu. 

Quando eu era criança, eu tinha um medo irracional de cair. E parece que ainda tenho. 

Os últimos quatro bipes, por alguma razão impulsionaram meu corpo pra uma queda infinita, escura e sem muita perspectiva perceptível. 

E eu vi o trem ir embora, me esmagando, tomando meu fôlego e me levando pra algum lugar que agora eu conheceria. 

O vão é bem menos assustador quando as portas estão fechadas. Fiquem atenta, mas temi demais. 

Quase perdi o trem. 


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⏰ Última atualização: Nov 18 ⏰

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