Nessa época eu ainda morava com a minha mãe, e lembro bem que meu guarda roupa era só um armário pequeno, daqueles de apoio para áreas de serviço. Cabia quase nada. E aquela toalha de banho ocupava meia prateleira. Além do perfume, as roupas e a bolsinha. Nunca parei pra pensar sobre o quanto de espaço é possível ceder quando alguém ocupa tanto espaço nas nossas vidas. Ou até quando se cede.
Havia um tempo que aquela toalha me incomodava. Não importava quantas vezes eu abrisse o armário, estava sempre ali, me incomodando. Ocupando espaço demais.
Algumas pessoas ocupam espaço demais.
É muito fácil se perder de si mesmo quando se tem o impulso de colorir o mundo de alguém que parece viver uma vida sem cor. É muito fácil perder tudo de si tentando preencher o vazio de alguém. A verdade é que as cores desbotam por alguma razão. E vazios preenchem o que alguém perdeu ou deixou ir. Eu não quero demonizar pessoas aqui, mas é fato de que elas vivem as consequências das próprias escolhas e não há como mudar isso. Cada um precisa enfrentar aquilo que trouxe para si. E eu só aprendi isso depois dela.
Eu não pensei muito sobre ela por um longo tempo. Até porque ela estava perto demais. Mas aos poucos aquele perfume começou a me perturbar. Grandes dores começam bem pequenas. Quase imperceptíveis. Disfarçadas na sutileza de uma balinha azeda de morango que você engole com um ou dois copos d'água. Depois vem o amargor de algumas palavras. E você vai engolindo. A adstringência de uma pergunta inconveniente. Você já engoliu demais.
Aqui você começa a perceber que essa pessoa já ocupa espaço demais, mas não o suficiente pra te fazer querer mudar ou parar isso. "Deve ser dos traumas", eu pensava. E queria acreditar que iria mudar. Os dias se passavam e aquela prateleira cheia me entristecia. Por que eu não consigo ajudar? Ela pode melhorar, ela consegue, sim. Eu me sentia imprensada. O chaveiro que ela colocou na chave fazia cócegas no meu joelho e eu sentia falta da solitude sempre que encarava um semáforo por mais de cinco segundos. Eu queria silêncio, mas o mundo parecia não dar paz a ela. "Por que tanta perseguição?", eu pensava, antes de sentir raiva.
E quando senti, me odiei. Porque, ora, como poderia eu sentir raiva de alguém a quem o mundo já maltrata tanto? Mas não pude deixar de repudiar aquele maldito antropocentrismo. Eu sentia os espasmos ao redor da boca sempre que ela criava um novo plano diabólico do qual ela era vítima. Cheguei ao ponto de dizer inúmeras vezes que ela não era o alvo, que o mundo não queria destruir sua insignificância, que as pessoas estavam ocupadas demais com seus próprios umbigos pra conspirar com tamanho fervor contra ela.
Mas ela insistia em estar no controle. De tudo, inclusive de mim. Logo eu, que cresci sozinha. Aquilo me imprensava cada vez mais. Ela controlava as miudezas e parecia fazer o mundo se mover. Tudo se movia, menos a maldita toalha, que parecia agora se expandir pelo armário todo, encharcada pelo perfume caro insuportável dela. Levei pra pingar lá fora, pendurei no fio do poste de luz e apaguei a quadra. Finalmente fez silêncio.
Eu não me importei de guardar minhas coisas com menos espaço por causa dela.
Mas ocupou prateleiras demais.
Ocupou muito espaço na minha vida e aos poucos, sobrou pouco de mim.
Aprendi a dobrar roupas pra economizar espaço, aprendi a guardar meus perfumes pra que não evaporassem, mas assim que pude, comprei uma toalha nova, só minha. Não ocupou um terço do espaço da toalha dela, e eu me senti genuinamente feliz por conseguir encaixar em outra prateleira e deixar aquele espaço bem vazio.
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O QUE ME OCORRE NO BANHO DO FIM DO DIA
No FicciónAs coisas podem ser um pouco mais do que parecem ser. Uma camisa pode ser uma tristeza muito profunda e uma xícara trincada, a última memória de um amor. Muito se passa diante dos nossos olhos todos os dias e pela nossa própria saúde, é importante...