A noite foi longa, quanto mais torcia para que ela se findasse o tempo se certificava de passar lentamente, foram tantas lágrimas que chorei que chegou um momento que elas secaram, minha garganta queimava com a sensação dos gritos abafados, meus olhos suplicavam para descansar e serem fechados, porém, aquela noite não só lutei com a dor dos fatos que ocorreu, mas por sentir falta de uma vida que nunca tive, onde podia descansar a cabeça e confiar que ao amanhecer meus dias seriam melhores. Às 8:00 o relógio desperta, minha mãe pula da cama assustada, ao fazer isso fecho os olhos instintivamente para fingir que estava dormindo, o que de fato não aconteceu, porém, sempre tentava esconder que estava bem e que lá nos meus sonhos, neles podia descansar, no entanto, até eles me assombravam.
Sinto suas mãos leves e delicadas tocar o meu rosto afastando meu cabelo dos meus olhos, ela coloca mais um edredom por cima do meu corpo, estava tão quente e reconfortante, esses momentos onde era cuidada fazia uma esperança dentro de mim crescer, ela é o meu porto, mesmo que tudo a minha volta se tornasse sombrio, ela estava ali comigo, tinha uma dívida com minha mãe que nunca pagaria e o remorso e culpa por nascer sempre alfinetavam minha mente.
" Ela seria uma ótima professora sem você, poderia se apaixonar, sorriria mais. Ela poderia viver de verdade".
Esses pensamentos eram inevitáveis.
— Tenha bons sonhos, Lia.—Escuto ela sussurrar próximo ao meu rosto, esse apelido o recebi desde pequena, ela amava esse nome, porém meu pai insistiu que colocasse" Amélia" em homenagem a sua falecida mãe e com bônus teria uma parte do nome que ela admirava, então sempre o usava quando queria ser atenciosa, outro dia a vi assistindo sobre Psique-Humana, que é usada para descrever a alma ou o espírito, inclui toda a gama de processos mentais conscientes e inconscientes condicionados pelo corpo, especialmente pelo cérebro em interação com o ambiente, então ela acreditava que se falasse coisas boas, mesmo que não estivesse escutando, eles iriam acontecer.
— Obrigado, Melissa. — Sussurro ao ouvi-la sair do quarto e fechar a porta.
— Não conseguiu descansar também, né? Abro os olhos e sento na cama com os olhos fixos na criança que permaneceu ali por toda a madrugada. Vou ao banheiro e lavo meu rosto como o habitual para despertar e conseguir ficar firme durante o dia, tomo os milhares de medicamentos recomendados, faço todas as minhas higienes, penteio o cabelo com meu corte French Bob que fica na altura do queixo, repicado e combinado com a franjinha. Devido à coloração loira, fica um pouco mais difícil de desembaraçar, ele sempre fica cheio e volumoso, meu cabelo é ondulado, sempre pende mais para o lado liso. Passo um corretivo nas olheiras para disfarçar os dias não dormidos, que não eram poucos, coloco uma regata branca com jeans preto e all star branco, passo um batom vermelho dando uma coloração de vida aos meus lábios os deixando vermelhinho claro, coloco um pouco nas bochechas também, visto uma jaqueta preta por cima, acrescento alguns anéis que gostava de usar e o meu anel de proteção, ele era um círculo com uma cruz dentro, minha mãe é bastante religiosa por isso recebi de presente nesse formato, coloco brincos com formatos diferentes nos meus 5 furos da orelha.
— Você vai sair? — Minha mãe questiona, assustada ao me ver descendo as escadas.
— Sim, vou fazer mais uma entrevista de emprego. — Falo abrindo a geladeira e pegando um galão de leite, coloco no copo e bebo puro. A sombra da menininha ainda me perseguia por todo canto, apenas acostumei a fingir costume com sua presença, exceto quando eram mais arrepiantes.
— Tem certeza que está bem para isso?.—O último gole do leite quase travou na garganta com sua indagação, pois o pavor de sair era sempre o mais difícil de lidar, nunca estava pronta, essa era a minha realidade ou eu morreria aqui dentro trancada, ou tentaria viver mesmo que nunca conseguisse de verdade, e outra, essa não foi a primeira vez que não dormir.
— Estou bem, não foi nada. — Falo com uma voz mais despojada, como se quisesse passar tranquilidade.
— Se precisar só ligar, falei com o Calleb, ele vai me liberar.— Calleb era um amigo de infância da minha mãe, embora ele nunca tivesse se declarado a ela, tenho quase certeza que ele sempre foi apaixonado por ela, sempre nos ajudou, empregou minha mãe em seu restaurante quando não tínhamos mais recursos, ele que paga todo o meu tratamento, estudo, mesmo tendo apenas um ano que terminei o ensino médio ele insiste em pagar uma faculdade para mim, ele foi mais pai que o homem que nos deixou, torcia para que um dia minha mãe percebesse esse cuidado por ela. Assinto com a cabeça confirmando, analiso Melissa ir para o centro da sala enquanto coloco mais leite no meu copo, ela liga a TV, volto minha atenção para o copo, para não deixar que a quantidade do leite desejado ultrapasse, mas escuto ao fundo no noticiário.
"Charlie, desaparecida, criança de apenas 9 anos é raptada dentro de sua casa"
Ao olhar a TV, avisto a mesma menina que estava em minha presença, com seu vestido vermelho cereja, mas seus olhos tinham vida e um sorriso caloroso na foto mostrada.
— Améliaaa?...—Minha mãe grita ao ver que o copo estava transbordando comigo despejando o leite, sem notar que estava o fazendo, no susto o levanto, porém bato no copo sem querer e o mesmo cai no chão espatifado, agacho rapidamente para recolher os cacos enquanto o líquido escorria pelo balcão até tocar o chão, pelo desespero acabo tocando sem jeito no vidro e corto a palma da mão, a fecho no mesmo instante suprimindo o sangue, a dor do corte não incomodava, não fazia diferença, a dor física nem se equiparava a dor da alma.
— Me deixe ver.— Minha mãe vem ao meu encontro com aquele olhar preocupante que ela sempre fazia, ele gritava que tinha algo errado comigo. Pega um pano e coloca por cima e pede para flexionar a mão, a apertando para tentar estancar o sangramento, enquanto ela analisava minha mão. Fico com os olhos fixos na TV, vejo a mãe de Charlie dar a reportagem.
— Por favor, se tiver com a minha menininha, a devolva, só queremos nos despedir dela. — Sabe o que doía nessas palavras? Ela tinha a convicção de que sua filha já estava morta.
— Amélia? Amélia? O que estava pensando?...
Melissa balança meu ombro, chamando minha atenção, estava tão concentrada que não consegui escutar ela chamar ao fundo.
— Oi? —Respondo desnorteada.
— Seu corte foi fundo, terá que levar ponto. — Embrulho minha mão com o pano e levanto, isso significaria mais um dia de emprego cancelado, não deixaria que isso acontecesse.
— Pode deixar, consigo ir ao hospital sozinha. — Ela franze o cenho com um olhar duvidoso.
— Da última vez, você... — interrompo antes que conte o caso.
— Eu consigo. — Forço um sorriso falso.
— Te deixo lá na porta antes de ir trabalhar.—Estava de acordo, enquanto minha mãe limpava a bagunça que fiz, sento de frente a TV e decoro o endereço mencionado na reportagem onde a menina foi vista pela última vez, após isso desligo a televisão, era angustiante ver aquelas pessoas chorando por ela.
— Está pronta? — Levanto de prontidão do sofá.
— Está levando seu telefone? — Coloco a mão no bolso e percebo que o deixei no quarto, saio correndo para buscá-lo, havia deixado ele perto da minha escrivaninha. Quando vou pegá-lo, Charlie segura meu braço, seu toque era gélido, me fez ter arrepios de frio.
— Tudo bem, agora tenho informações, será mais fácil de encontrá-la, eu prometo. — Pronuncio cada palavra calmamente, tentando reconfortar seu espírito e até mesmo o meu.
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O que os meus olhos podem ver?
Fantasy🥇 Colocado no Concurso Alice In Bordeland/ Fantasia. ••• Você acredite ou não, a cortina que oculta as criaturas que habitam o outro plano, onde passam desapercebidos pelos seres humanos é inexi...