prólogo

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PRÓLOGO

Os gritos ensurdecedores de Gemma ainda ecoam quando estou em silêncio. O primeiro golpe não foi intencional, eu juro, mas a cada ferimento infligido, minha mente me arrastava para um lugar mais profundo onde a realidade distorcia-se. Cada movimento ordenado por uma ira que eu sequer sabia existir, revelando uma brutalidade tão cruel que eu só poderia ter herdado dele.

Pare, Harry! Eu vou chamar a polícia, ela gritou. E só então eu percebi que ainda estava em cima do homem que um dia chamei de pai, perfurando-o repetidamente até atingir o osso. Minhas mãos pingavam, a faca cintilando sob a luz vacilante do abajur, refletindo as sombras do ato mais horrível que eu já cometi.

Nunca pensei que a máscara de bom filho seria arrancada do rosto pelas minhas próprias mãos. Lembro das batidas do meu coração acelerando novamente ao que me dei conta de que meus demônios me venceram. Era tarde demais. E, sabendo disso, optei por tomar outra decisão estúpida.

Não vou ser capaz de esquecer o horror nos olhos de minha mãe quando ela despertou no susto, sufocando na dor da minha traição. O sangue da mulher que me deu a vida jorrava nos lençóis enquanto ela perdia a própria. Irônico. Seus olhos tornaram-se pálidos diante dos meus, enquanto as sombras me abraçavam e eu mirava o escarlate tingir o tecido branco como num quadro macabro, expulsando o que restava da minha humanidade.

Eu ainda empunhava a arma do crime quando o som das sirenes se fez presente. Minha irmã permanecia aprisionada em seu próprio banheiro num silêncio forçado. O desfecho inevitável me alcançou, arrastando-me de volta para a realidade em que eu precisaria lidar com as consequências do ato insensato que consumei.

As algemas enlaçaram meus punhos e, pela primeira vez, observei o cenário da tragédia que criei, o palco daquele espetáculo horrífico. Meus olhos cruzaram com o dela, incertos, dizendo fiz isso por você. Ergui uma sobrancelha, como se quisesse alguma confirmação da parte dela, que não veio. Fui guiado por dois homens para fora dos destroços do que um dia foi meu lar.

Meus lábios se mantiveram fechados apesar do desejo em espalhar o veneno que inflamou nossas entranhas e me conduziu à minha própria condenação. Quando os flashes atingiram o meu rosto na chegada a delegacia, soube que minha vida nunca mais seria a mesma. Os jornais estampariam meu rosto, a mídia vasculharia cada ano da minha infância e dissecaria todos que um dia me conheceram. Não há arrependimento quando visito estas lembranças, portanto não busco chance de redenção. Aceitei os desdobramentos do destino, me atirando do precipício íngreme que eu mesmo criei, na expectativa de, quando atingisse o solo, pudesse sentir algo além de desespero.

I guess my race is run
(Acho que acabou para mim)
I fought the law and the law won
(Eu briguei com a lei e a lei venceu)

desperado • l.s.Onde histórias criam vida. Descubra agora