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𝙎𝘼𝘽𝙄𝙉𝙀 𝙇𝙀𝙃𝙈𝘼𝙉𝙉

Não querer desapegar de algo é extremamente compreensível. Todos nós já tivemos aquele brinquedo que não brincávamos mais, já que nem nas profundezas das nossas memórias lembrávamos da sua existência dispensável; contudo, quando nossos pais queriam doar ou vender para qualquer outra criança que não fosse você, isso já era motivo para despertar uma crise de choro e birra, ou um motivo para prestar mais atenção no espaço que aquele objeto ocupava.

Mas Matt não era um brinquedo e o sentimento não era igual, era semelhante, mas não igual.

O luto é capaz de destruir uma pessoa de forma jamais vista, a sensação que você deveria ter aproveitado mais os momentos que lhe foram proporcionados ao lado do seu amigo é esmagadora; a culpa que seu coração lhe faz sentir é opressivo; chega a ser injusto o quanto a sua mente te pune e quanto a vazio te sufoca pelas memórias guardadas cuidadosamente.

Eu estava aqui, deitada na cama minimamente arrumada de Matt, observando sua cômoda com os perfumes levemente embaralhados e olhando para uma fresta do seu guarda roupa aberto, mostrando suas roupas esticadas em cabides. Minhas unhas estão cravadas nos lençóis de se cobrir do meu melhor amigo, enquanto meu nariz exala a fragrância do seu perfume doce, e eu ainda reprimo o peso do desespero.

— Amiga? Posso entrar? — A voz feminina levemente aguda de Diane foi abafada pela porta — Sabine? — Chamou.

Não sei o motivo, mas sinto que os meus sentidos estão mais frágeis que o meu normal. Meus ouvidos estão mais sensíveis às vozes, como se todos estivessem com microfones em suas gargantas e que todas as vezes que tentavam me dizer algo, acabava estourando o volume, os deixando incompreensíveis e insuportáveis.

Lutei contra a minha vontade preguiçosa e levei o meu olhar para a porta. Se eles quisessem entrar, para mim, não faria diferença, eles tinham permissão para qualquer coisa.

A porta foi aberta por uma cabeleira loira, mas não era a de Diane como vi a última vez, era Nick que estava usando os seus fios naturais novamente. O garoto adentrou ao espaço com as mãos tampando os seus olhos, já Diane não foi nem um pouco sútil e apressou seus passos em minha direção, cobrindo meu corpo com o edredom, mesmo depois de dizer para Nick que crescemos juntos e que não tinha diferença em me ver de biquíni ou com apenas uma camisa gigante – que nem era minha –.

— Sabine, você está em um estado deplorável — escutei Diane dizer, chamando a minha atenção — Olha, eu estou mal também, mas eu não posso ficar me lamentando. Tem uma vida inteira pela frente e...

— Diane — Nick a interrompeu — Chega desse papo motivacional imbecil! Nosso amigo acabou de morrer e nenhum site idiota sente pena verdadeiramente de nós! Eles querem apenas tirar o máximo dessa tragédia, tá bom? — Falou, mesmo que eu não entenda o que isso tenha a ver com o que Diane estava falando — Não temos obrigação de sair saltitando e fingindo que nada aconteceu, porque aconteceu! E nós temos direito de viver o luto — Completou.

Nick estava falando, mas o seu timbre não tinha a mesma voracidade de quando começou seu discurso, aos poucos, ela se tornava fraca e chorosa, como se estivesse calculando todas as palavras para não desabar em lágrimas.

— Eu nenhum momento eu disse para sairmos saltitando! Só não acho que ficarmos aqui vai adiantar alguma coisa! — Diane brigou.

Sentei-me na cama, descansando minhas costas na cabeceira, vendo ambos os mais novos brigando como sempre. Ver a cena me deixava nostálgica, poderia jurar que Matt estaria entrando pela mesma porta de antes e começando a mandar eles calarem suas bocas, pois tinha algo importante para falar ou porque apenas queria um minuto de silêncio.

Fazia dois dias que eu não falava, eu queria esquecer como se pronunciava as palavras, queria me manter quieta e somente escutar o que a voz da minha cabeça fala para mim, e talvez, só talvez, seguir os seus conselhos prejudiciais. Mas, dada a situação, escutar vozes de dois seres humanos que têm o timbre naturalmente agudo com sua cabeça latejando por péssimos dias dormidos, não é a melhor coisa.

Por favor... — Sussurrei rouca, conseguindo captar a atenção de ambos — Calem a boca, só fiquem quietos! Droga, isso não é tão difícil assim! — Implorei.

— ... Pelo menos, você não está muda — Brincou a menina.

— Caralho, qual é o seu problema? — Nick perguntou de imediato, começando novamente uma pequena briga entre os dois.

Eles sempre foram assim, sempre, era ridículo chegar nos lugares e ter que intercalar os assentos por causa que se eles ficassem juntos, saberíamos que chegaríamos com um membro a menos no país planejado. Eu estava acostumada com isso, estava sempre pronta para ver Matt assumir o controle da situação e acalmar os mais novos como se fossem seus próprios irmãos. Era mágico ver isso acontecendo e eu o admirava por isso.

É, é muito esquisito falar do meu amigo no passado. Eu nunca irei me adaptar a essa nova rotina. A essa nova vida.

Eu me sinto perdida, como se toda a minha vida eu tivesse sido guiada por mãos invisíveis e ordens induzidas para seguir. Agora, sinto que estou começando a caminhar sozinha, como um bebê em seus primeiros passos, e isso me assusta, tomar decisões é assustador.

— Diane, venha para cá — Mandei, elevando meus braços para os lados e dando espaço para a menina se deitar em meu ombros, abraçando a garota e acariciando seu braço — Nick, aqui — Ordenei, fazendo o mesmo que fiz com Diane, só que do outro lado — Assim é bem melhor do que brigar, para mim, ao menos.

— Com certeza é melhor — Diane murmurou — Se ele estivesse aqui, poderíamos estar assistindo um filme. Eu o deixaria escolher.

— Não deixaria não — Falei. Diane iria protestar em sua defesa, mas ela sabia que eu estava certa — Eu sinto tanta falta dele, eu queria mais tempo, só um pouco mais de tempo com ele.

— Todos nós queríamos — Nick concordou, escutei um suspiro profundo vindo do garoto, enquanto seus braços rodeavam a minha cintura e ele se encostou ainda mais em meu corpo em busca de conforto e abrigo — Se eu estivesse aqui... Se tivesse pegado o avião, talvez Matt ainda estivesse aqui e...

— Não se culpe por isso. Você não tinha como prever, ninguém aqui tinha como saber. Não podemos culpar ninguém por isso, acidentes acontecem — A menina ao meu lado reconforta.

Ficamos aproveitando o silêncio que aquele quarto havia se tornado, contemplando o momento que nós nos seguramos uns aos outros, buscando apoio na pouca sanidade que cada um tinha ali. Seria lindo se não estivéssemos compartilhando uma sensação tão trágica.

Eu havia expulsado qualquer pessoa que tentasse se aproximar de mim ou invadir aquele quarto que pertenceu poucas semanas ao meu amigo, de forma impressionante, mesmo dispensado o serviço de quarto, o cômodo ainda continuava cheiroso e limpo.

Eu adorava isso. Ele adorava isso.

 Ele adorava isso

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𝐍𝐄𝐕𝐄𝐑 | ᵗᵒᵐ ᵏᵃᵘˡⁱᵗᶻOnde histórias criam vida. Descubra agora