Consequences

440 45 6
                                    

A vida não é um filme.
E se fosse, seria apenas o flash de uma existência.

Não há vilões que se dão mal no final, não há mocinhos injustiçados. Há  pessoas, só pessoas que precisam evoluir. Pessoas que precisam entender que não é como elas querem, é o que elas precisam. Do que eu preciso?

— Eu tenho problemas com confiança. — Apertei o braço da Camila, por algum motivo eu queria loucamente me desculpar com ela. Seus olhos ainda estavam vermelhos, ainda estavam molhados. — Me dá mais uma chance?

Ela me olhou por alguns segundos, balançou a cabeça e soltou seu braço da minha mão. — Depois conversamos, Lauren. Eu estou trabalhando. Errei em sair um pouco, não vou errar novamente.

— Camila, você está chateada?

— Chateada não, menos interessada.


Quando vi ela entrando na casa de shows novamente, lembrei que eu já havia pedido uma segunda chance antes. Acho que eu seria um "errar novamente também".
Entrei, passando pela mesma porta que Camila passou. Procurei a Dinah, ela estava atracada com o Brian, ela não tinha separado dele? Chamava-o até de "falecido".

Me aproximei e toquei no ombro dela. — Estamos na Páscoa?

Ela me olhou confusa. — Você fumou?

Apontei para o Brian — E no terceiro dia ressuscitou.

Ela revirou os olhos e se afastou do cara, dizendo que voltaria depois. Ele deu um tapa na bunda dela e ela olhou beeemm safada para ele. Fomos até a saída e paramos na calçada. O ar frio refrescou meu rosto, eu queria tanto chorar.

— O que você quer, Lauren? Espero que seja algo muito importante pra me tirar de um amasso gostoso.

Acendi um cigarro e dei um trago no vício que eu jurei ter parado. — Quero ir embora. Chama o uber pra mim?

— Tem certeza que isso aí é cigarro? Teve ter algum alucinante aí. Você veio de carro, sua louca.

— Perdi minhas chaves e meu celular. E vou precisar da sua chave reserva da minha casa também.

Dinah abriu sua bolsa, me entregou o molho de chaves e pegou o celular. — Se você usasse bolsa isso aí não iria acontecer.

— Você usa bolsa e isso acontece sempre com você.

Ela revirou os olhos. — Vou cobrar no seu cartão. Puta merda, uber tá caro!

— Estamos próximo a semana do natal, tudo está em dinâmica. Voltou com o Brian?

— Acredita que o Brian me perguntou se voltássemos eu ia trair ele? Que idiota, eu não quero nem assumir ele mais. Pronto, achou, 6 minutos. Você vai ficar bem indo sozinha?

Senti um aperto na minha garganta. — Ela disse que está menos interessada.

Dinah me puxou para um abraço. Abracei sua cintura e coloquei minha cabeça em seu pescoço, sentindo o cheiro de glitter.

— Da um tempo pra ela, Lolo. Vocês precisam de um tempo.

Respirei fundo, desvencilhei do abraço e olhei para ela. — Faz tantos anos que você não me chama de Lolo.

— Pinoquita é pra te irritar. Você era o Pinoquio em pessoa, convenhamos. — Deu um soquinho no meu ombro. — Eu vou embora com você. Brian que se lasque, tô com fome mesmo.

— Vamos pedir uma pizza então.

— Pede duas, já falei, tô com fome.

E realmente pedimos duas pizzas, ela insistiu pra assistirmos doramas, nunca entendi como ela conseguia gostar daquilo. Como ela dormiu nos primeiros 20 minutos, deduzi que ela usava aquilo como sonífero.

2 clonazepans não me adormeceram, muito menos os doramas. Pela manhã me arrumei e decidi ir ao escritório. E daí que é domingo?

Enquanto lia alguns contratos o porteiro ligou, quando ele falou quem ia subir eu gelei.

Poucos minutos depois Camila estava parada em minha porta, eu a via pelo vidro fumê, nos olhamos por alguns segundos, ela parecia hesitante e eu não conseguia me mexer no sofá.

Ela empurrou e entrou, eu não sabia o que falar, continuei sentada com a respiração suspensa. Ela carregava uma sacola de farmácia na mão, cheia de caixas de remédios e com meus pertences.

Ela parou por alguns segundos e olhou ao redor, depois se sentou ao meu lado e
me entregou o celular e as chaves.

— Sua avó ligou. Pensei que era você e atendi. — Corou um pouco. — Você terá que ir lá no natal.

Ela se encolheu, e tudo que eu imaginava era o quanto ela estava linda. Seus cabelos estavam presos em um coque desleixado, ela vestia moletom e estava sem maquiagem. Que mulher perfeita!

— Desculpa, Lauren. É que ela insistiu muito.

— Tudo bem. Minha avó é assim, ou ao menos era. Faz muitos anos que não falo com ela.

Eu me encolhi tímida e Camila arrelagou os olhos. — Eu morreria se ficasse um dia sem falar com meus pais ou minha abuela. Agora me sinto culpada por ter atendido, mas ela ficou tão feliz que atendi.

— Você está perdoada. Não tinha como você saber. Eu transicionei e... ela é muito religiosa. — Dei de ombros — Ela nunca me viu assim, então tenho fugido dela.

— Mas ela te chamou de Lauren.

Senti meu coração acelerar, ele quase veio à boca. — Pelo meu nome?

Camila balançou a cabeça e tocou minhas mãos. — Ela disse que sente sua falta. Contou até uma história de quando você era criança.

Não poderia ser verdade. Será? Ela sente mesmo minha falta? — Qual história?

— Que em um natal seu pai te levou lá e que você tirou as panelas dela tudo do armário. E ficou batendo nelas igual bateria. Disse que você era bagunceira.

Meus olhos se encheram de lágrimas, mas não caíram. — Quando decidi ser quem sou, doeu me afastar dela, mas sei que doeria muito mais ver a decepção nos olhos dela. Então, nunca mais atendi a um telefonema, ou vi ela.

— Isso já deve fazer muito tempo. Mas, pensa bem, ela te chamou. Não sei como ela é, mas parecia ser muito carinhosa. Mas se isso te doer, então não vai.

As lembranças dos seus abraços quentinhos voltaram a minha memória. Assim como a vergonha. Eu morria de vergonha de falar com ela, dela me ver assim.
— Não quero falar disso agora.

Camila alisou minha mão e a voltou para seu colo.— Tudo bem. — Respirou fundo como se estivesse tomando coragem
— Lauren, você me magoou muito. Não consigo nem mensurar. Mas também eu não fui honesta com você. Vamos começar de novo?

Estendi minha mão em cumprimento, como se estivesse me apresentando a um desconhecido. — Sou Lauren, tenho 34 anos. Sou produtora musical e tenho minha própria produtora com alguns sócios. Sou intersexual, ainda não me dou bem com isso, mas estou no processo. Tenho problemas com abandono, ansiedade e confiança. Tomo três remédios diferentes e acho que eles não estão funcionando mais.

Camila pegou minha mão. — Sou Camila e tenho bordeline.

Congelei.

Ela puxou a mão e colocou sobre o colo, apertando uma das caixinhas de remédio. — Eu estou em tratamento. Meus últimos relacionamentos não foram muito... saudáveis, e não falo só de amor, amizade também. Eu deveria não me relacionar com alguém durante dois anos, assim eu poderia saber quem realmente sou, mas daí você apareceu e estragou tudo.

— Isso explica muita coisa.

Ficamos em silêncio, ela descascando o esmalte da unha e eu com mais de mil pensamentos aleatórios.

— Por isso aquele dia você bebeu gim, é porque eu gosto,né? Mas dá próxima vez toma com tônica, fica melhor o sabor.

Ela me olhou me analisando. — Você não... você não está com raiva?

— Por que? Deveria? Você está se tratando, não é? Tudo bem então.

— Posso ser difícil as vezes.

Gargalhei. — Ei! Você tá falando comigo, já viu a confusão que eu sou?

— É, você não é um docinho, não.

Retirei os papéis que nos separavam. — Eu sei bem pouco sobre... seu problema, mas se você me explicar eu posso aprender. Posso aprender a conviver com você.

Ela sorriu, um sorriso que não encontrou os olhos. — Só não me abandone e tenha paciência comigo.

— Posso fazer isso.

Sorriu. — Então seremos boas amigas.

Droga. Não quero ser só "amiga", mas o que quero afinal? Do que eu preciso?
Ficamos em silêncio olhando a paisagem da minha janela.

— Dinah falou que você estaria aqui na produtora. Ela mandou eu te falar alguns palavrões porque você deixou ela dormir com glitter.

— Ela não dormiu, entrou em coma, meu sofá tá todo babado.

Ficamos mais alguns segundos em silêncio. Isso me incomodou. — Mas então, você vai passar Natal com seus pais lá em Miami ou eles virão aqui?

Camila rodou o anel no dedo e mordeu a bochecha. — Eles estão em um cruzeiro. Fizeram 20 anos de casados no dia 12 agora.

— Então vai passar sozinha?

Ela se encolheu no sofá, olhando para o chão. — Mais ou menos. Minha irmã chegará de manhã para abrir os presentes. Então vou passar com o marido dela.

Ciúmes queima a garganta, né? — Mas você sente falta da ceia, não é? Latinos tem essa cultura de ceia e fogos de artifícios.

Ela balançou a cabeça afirmando. Rodou o anel no dedo e mordeu o interior da sua bochecha, estava tão encolhida, tão abandonada ali.

— Camila. — Me arrumei no sofá e me virei totalmente para ela. — Você quer ir comigo passar o natal com minha avó?

Ela me olhou, parecia hesitante.

— Eu não vejo minha avó há muito tempo, ela nunca me viu assim. Você é minha amiga, preciso do seu apoio.

Sobre isso, eu estava apavorada. Cada vez que pensava em ver minha avó, queria me enfiar em algum buraco e viver lá em posição fetal.

— Tudo bem, vou com você. Saudades de comida de vó.

Ri alto. — Então vai continuar com saudades. Minha avó é diferente, não sabe cozinhar bem. Deve encomendar a comilança de Natal. Posso então contar com você?

Sorriu, dessa vez seu sorriso alcançou os olhos. — Pode sim. Seu irmão vai junto?

— Claro. Já vou ligar pra minha mãe, eles não curtem muito natal mesmo.

— Então estamos combinadas.

Algo ainda me incomodava.— Você vai me contar sobre aquele homem que apertou seu braço?

Intersex - a história  de LaurenOnde histórias criam vida. Descubra agora