B.o.a.t

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O Uber me deixou na entrada do Allegiant air, uma lufada gélida congelou meus lábios já rachados, como eu iria beijar a Camila com a boca assim?

Olha a iludida, será que eu poderei beijar ela novamente?

Puxei minha única malinha, as rodinhas tintilando no piso enquanto eu entrava no aeroporto e respirava aquele ar frio, qual tempo eu irei encontrar em Miami? Qual desfecho me espera lá? Será que Camila irá me aceitar de novo ou tacar um sapato em mim? Tomara que não seja sapato de bico, ou bota, bota é muito pesado pra levar na cabeça.
 
Parei no bar, uma coragem líquida me ajudaria antes de fazer o check in. Quando meu gim chegou, uma mão feminina pegou meu copo.
— Vó? O que está fazendo aqui?

Ela terminou de dar um longo gole e olhou admirada para o copo. — Quantas memórias boas, ah se essa bebida falasse. Se bem que ela é boa em fazer a gente falar.

Ela me olhou, eu apenas fiquei parada olhando de volta para ela, é obvio que Dinah a chamou, mas pra que? — Vó? O que está fazendo aqui?

Ela pousou o copo na bancada e se virou para mim. — Eu não vim te impedir, se é isso que você pensou. Eu apoio sua ida, apoio sua coragem, mas quero conversar com você antes, não quero que você cometa os mesmos erros com a Camila, como disse a Dinah "essa história já está ficando tediante".

Não sei se brigo ou se fico feliz com minhas amizades. Dei um tapinha no banco ao meu lado, informando que ela poderia se sentar. — Fico feliz em te ver. E feliz que você me apoia, vó.

— Eu sempre vou te apoiar no que for bom pra você. Eu te amo, quero sua felicidade.
Ela levantou a mão pedindo dois copos de gim. O garçom fez uma cara estranha, mas trouxe os copos.

Peguei meu copo e o rodei em minha mão, de repente a vontade de beber havia passado. — Mas acho que não tenho o que conversar, eu quero a Camila e vou atrás dela.

— Por que?

— Porque ela é perfeita.

— Ela foi reprovada no psicotécnico pra tirar a carta de habilitação. Ela tira meleca do nariz quando ninguém está vendo, tropeça andando de salto. Está longe de ser perfeita, ainda bem. Não coloque ela em um pedestal, isso só vai criar expectativas e exigências absurdas. Ela não merece isso, nem você.

Sorri, me lembrei de como a Camila era desastrada, e de como ela ria alto quando ficava nervosa. Ela era um pouco stalker, isso por um lado era bom, porque eu não precisava me explicar, por outro era assustador.
Camila inventava umas danças estranhas que me fazia rir, e questionava demais minha infância, talvez ela só quisesse me conhecer melhor, se conectar comigo. Ela não era perfeita, ainda bem, porque também não sou.

— Pra mim ela é perfeita. 

— Exato, pra você. Eu não quero me meter em sua vida... — olhei minha avó, ela estava sem maquiagem, com rosto pronto para dormir, Dinah tirou ela da cama. — Eu quero que dessa vez vocês deem certo, Lauren. Você me escutava antes, desejo muito que isso não tenha mudado.

— Não mudou, vó. — Toquei o joelho dela — Mas eu tinha um relacionamento muito especial com a Camila.

— O que vocês tinham de bom nesse relacionamento?
A encarei por alguns segundos.

— Para de safadeza, não vale falar sexo.
Corei, minha avó sempre foi tão diferente, tão direta e jovem. Alma jovem.

— O que? Só porque sou velha não posso falar de sexo? Ou só porque você é minha neta eu não posso falar disso? Estou velha, não morta.

Nunca a vi unicamente como minha avó, a vejo como uma amiga. Foi para ela que contei da primeira menina que beijei. Ela sempre foi minha conselheira, por que eu me afastei tanto?

— Lauren, eu não quero chegar impondo nada depois do tempo que ficamos afastada. Mas eu me importo com você, mais do que você pode imaginar. E por isso estou aqui, porque eu te amo e não quero que você faça mais estragos na sua vida e na vida daquela menina.

Olhei para minhas mãos, quando eu havia lascado minhas unhas? Por que minhas mãos estavam tremendo?

— O sexo em relacionamentos disfuncionais costuma ser muito bom. Por isso não duvido que tenha sido bom entre vocês. E muitas vezes o sexo é a única razão desses relacionamentos existirem.

— Vó, a senhora não entende.

— Então, me explica. Eu quero entender.

— Eu vou enlouquecer se não ver a Camila agora.

— E vai fazer o que depois que encontrar ela? Ela irá te ver, correr pros seus braços e vocês serão uma família feliz? Você chegará de cavalo e buquê e tudo será esquecido com direito a "e foram felizes para sempre?
Isso não é uma comédia romântica. Traumas foram criados.

Peguei meu copo e bebi tudo, minha avó levantou uma sobrancelha e riu.

— Eu sei que você tem sentimentos pela Camila, mas isso tudo foi potencializado pelo fato dela ter ido embora. Você precisa racionalizar as coisas, fazer esse relacionamento dar certo, ou vocês irão entrar no mesmo ciclo vicioso de sempre.

— Não tem como, vó. Eu preciso dela, eu larguei um projeto de meses pra encontrar ela, eu larguei meu trabalho de qualquer jeito pra ver ela, larguei
minha casa, minha vida...

— E você pretende jogar isso tudo na cara dela se ela não atender as suas expectativas?
Nos olhamos por alguns segundos, o barulho das pessoas conversando preencheram o ambiente. O que ela estava tentando me dizer? O que eu não estava vendo?

— Lauren, você tem o hábito de escutar apenas o que você quer ouvir, e responder sem pensar. Vou te perguntar de novo, dessa vez quero a resposta correta. Por que você vai atrás da Camila?

— Porque eu a amo.
Minha avó sorriu largo. — Ama o bastante pra cuidar de você primeiro?

— Como assim?

— Filha, vá sim, encontre a Camila, mas não vá com os planos que você tinha, crie novos planos. Tire alguns dias pra você e faça uma imersão, conheça a Lauren. Você conhece a Lauren? Você se deu esse tempo após sua transição? Ou você tem só sobrevivido esses últimos anos?

— Não tive tempo.

— Mas agora você tem tempo. Se cuida primeiro, ou você vai continuar jogando seus traumas em cima dela. — Minha avó tirou um cartão de QR code do bolso e me entregou. — Esse é o Raul, ele tem uma pousada linda, fique lá o tempo que quiser. Se ele perguntar sobre mim, pode falar que ainda estou solteira.

Ela deu uma piscadinha, o barman colocou um copo com força no balcão, minha avó o olhou com cara de tédio.
— Olha aqui Michael, eu posso ficar com quem eu quiser. Se você não quer me assumir o problema é seu, me perdeu.

Olhei para o barman, ele deveria ser mais novo que eu, minha avó e seu fogo. Sorri, ela não mudou nada.

— Está na hora de você ir. — Ela se levantou e abriu os braços me abraçando com força. — Tentarei encontrar a Camila pra você com alguns amigos meus. Promete que vai se cuidar? Promete que dessa vez você vai cuidar bem da Camila?

O abraço dela era o melhor do mundo. — Prometo e prometo.

— Lauren, é bom você cumprir, a Dinah me falou que se você, como mesmo que ela disse? Ah, “se você fizer merda ela irá chutar sua bunda tão forte que você vai beijar São Jorge na lua”.

Ri alto. Fiz o check in, passei no Duty Free para comprar um creme para os lábios.

Só voltarei a New York com a Camila comigo, porque a amo.
 

Intersex - a história  de LaurenOnde histórias criam vida. Descubra agora