witness

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A vida é uma eterna espera.
Esperamos para nascer, para crescer e viver. Esperamos nas intermináveis filas; para ter sucesso, a hora certa de fazer algo e existimos esperando a morte.

As vezes me perco no que espero, mas mesmo assim espero alguém que me queira com minha ansiedade; alguém que ponha bilhetes nos livros que vou ler, alguns post its pela casa. Alguém que não abandone a conversa quando não sei mais o que falar.

Espero alguém que verifique se tranquei a porta, e que não vá embora com os nossos erros.
Alguém que me ligue para contar como foi o dia, e que faça meu peito de travesseiro.
Espero tanto alguém que tenha uma risada gostosa de se ouvir, me fazendo sempre querer ser engraçada.
Alguém que trate o Nathan como um pedacinho de mim, como minha infância perdida.

Desejo tanto alguém que pise no meu pé na dança, e que não se perturbe com o que as pessoas pensam ao nosso respeito.
Espero alguém que me ensine a me amar, pois as rejeições me ensinaram a me destruir.


Acordei com a boca seca e o sol entrando pela janela. Nem percebi quando adormeci. Há quanto tempo não dormia direto sem remédio?

Eu estava sozinha na cama, abraçando o travesseiro.
Levantei procurando por Camila, o cheiro dela ainda estava nos lençóis, no ar. Ouvi um barulho vindo da piscina. Sorri ao ver três cabecinhas conhecidas lá embaixo. Camila e Dinah brincavam com Nathan, como se fossem melhores amigos.

Desci para preparar o café da manhã, mas já estava pronto, exposto na mesa, esperando apenas minha presença. Isso era estranho, algo novo pra mim.
Tomei em silêncio, planejando como abordaria a conversa com Camila, eu tinha tantas perguntas.

Senti uma mão úmida tampar meus olhos.

— Não vou adivinhar quem é, preciso de dicas.
Recebi um beijo molhado no pescoço, uma língua quente disfarçada que me arrepiou.
— Ainda não sei quem é. Preciso de dicas mais quentes.

Camila riu e me abraçou, seu cabelo molhado encostando em mim. Quando eu ia puxá-la para conversamos, Nathan entrou correndo na copa.

— Big Big, pinguim afundou!

— Nossa! E agora? Quem vai salvar ele? — Não tinha noção quem era o pinguim, possivelmente era alguma boia inflável.

— Vem brincar, vem? — Pegou na minha mão, tentando me puxar. Sua mãozinha estava gelada.

— Kid, a piscina é aquecida, fora dela tá bem frio, evita ficar entrando e saindo. Pode ser ruim pra você.

Ele me olhou confuso. — Vem brincar.

Revirei os olhos e levantei. Dando uma última golada no meu leite. Fui rebocada por Nathan até a piscina, junto com Camila. Dinah estava enchendo um pinguim inflável... sem sucesso.

— Essa merda não quer encher por nada!

— Olha a lingua, Dinah! — Apontei para o Nathan, ela me olhou culpada, sibilando um "Foi mal". — Acho que tem que ser com a bomba. Vou lá buscar, fica com ele.

Peguei na mão da Camila e a puxei, levando-a até meu quarto. Chegamos e eu quase a empurrei para dentro devido a pressa.

— A bomba tá aqui, Lauren?— Perguntou confusa.

— Claro que não. Só queria conversar com você um pouco.

Ela juntou as mãos e andou pelo quarto. — Seu quarto é do tamanho do meu apartamento todo. Tô muito na profissão errada.

— E qual sua profissão mesmo? — Perguntei fechando a porta.

— Era atriz e cantora, com bicos de atendente. Mas agora tô pensando em ter a mesma que a sua. — Brincou.

Parei na frente dela. — Produtor musical não é brincadeira. É massacre de sonho de pessoas ingênuas, foco em lucro e muitos, mas muitos dribles em tubarões.

— Eu não consigo te enxergar assim. Você é doce demais pra isso.

Tentou tocar meu rosto com sua mão fria. Afastei dando alguns passos para trás e ela se encolheu.

— Olha aqui, Camila. Vou ser direta. O que aconteceu ontem? Você tava bem, conversou comigo, estava até animada. Depois do nada me ligaram falando que você estava desmaiada em uma boate de tão bêbada. O que aconteceu?

Ela se encolheu mais, como uma criança recebendo bronca.
— Eu, eu não sei. Me desculpa, não vai mais acontecer.

— Isso é foda demais, não é nada sadio.

Ela veio em minha direção, agarrou a barra da minha blusa, seus olhos lacrimejando. — Me desculpa, não vai mais acontecer.

— Eu não quero desculpas, quero a verdade. O que aconteceu, Camila? Alguém te obrigou?

Balançou a cabeça. — Não! Fui sozinha.

— Então é isso? Você é assim? Foi o que? Encontrar alguém? — Me afastei empurrando suas mãos, a visão dela saindo com outra pessoa me deu náuseas. — Não precisa me contar, não é da minha conta.

— Não há mais ninguém. Eu juro. — Ela veio atrás de mim.

— Olha, não tem como eu confiar em você.

Agarrou minha blusa, consegui sentir suas unhas em minha pele pelo tecido. — Não, não vai mais acontecer. Eu juro, Lauren. Não teve ninguém, eu só. Eu só, não sei. Me perdoa.

— Camila. — Retirei suas mãos de mim, segurando-as com carinho. Usei o tom mais calmo possível e me sentei na cama, a trazendo junto. — A partir de agora vamos ser apenas amigas, ok? Amigas sem benefícios.

— Não. Me perdoa, não fiz por mal. Não tinha ninguém. Não sei o que aconteceu.

Ela avançou e me abraçou, me deitando na cama. Estava chorando, lágrimas como rio descendo pelo seu rosto. Ela parecia tão culpada.
Isso me assustou, não precisava de tanto. Nem se tivéssemos algum romance real e ela tivesse me traído precisaria de tanto.

Droga! Algo de errado não está certo.
Merda! Minha mente em vez de buscar algo útil veio com meme.

Abracei a Camila, que fungou contra meu peito. Só então percebi que ela estava usando meu moletom. Nos deitei na cama devagar.
— Se acalme. Respira. Vai ficar tudo bem, Camz.

O apelido saiu do nada, mas gostei do som.
Ela se aconchegou melhor em meu peito, me usando como travesseiro. — Você vai me deixar?

Passei a mão em seus cabelos. — Não. Erros acontecem, e não é afastando que vamos resolver. Mas precisamos conversar mais. Sabemos pouco demais uma da outra.

Ela se levantou um pouco, ficando em seus cotovelos, limpando suas lágrimas. — O que você quer saber sobre mim?

A olhei, era tão mais linda sem maquiagem. Havia algumas manchinhas pequenas de espinhas, um pouquinho de sardas. Era tão nova, um olhar tão inocente e dolorido. Aquele tipo de olhos que trazem batalhas duras, mas um coração grande.

— Pode começar com sua família. Lembro que falou que sua irmã tá aqui.

Ela balançou a cabeça rápido confirmando. — Não é minha irmã de sangue, mas fomos criadas quase juntas. Ela me abrigou aqui. Tenho uma irmã bem novinha.

Ah sim, a menina do "Dame tu cosita", agora pronto, a música vai voltar a ficar rodando em minha mente. — Legal. Você é da onde?

— Cuba! — Respondeu rápido, parecia um jogo de perguntas e respostas valendo tortadas. Ela me olhou desconfiada por alguns segundos. — Eu não quero você pra ter green card não. Sou naturalizada aqui, viu? Também sou americana.

Confesso que esse pensamento me ocorreu. — E onde está sua família?

— Em Miami. Todos estão lá.

— Sente saudades deles? — Toquei sua bochecha, ainda estava úmida das lágrimas.

— Todos os dias. Aqui eu fico muito sozinha.

— Te entendo. Mas é bom que seu trabalho ocupa seu tempo. E seus estudos também.

Ela se animou. — Sim! E hoje depois do trabalho tenho a minha apresentação, aquela que serei substituta.

Ela vai de zero a 100 muito rápido.
Meu Deus! Ela está com zero ressaca, e ainda tem disposição para trabalhar e se apresentar depois. Envelhecer é terrível mesmo. Eu bebo e preciso de dois dias de descanso e isotônico pra sobreviver. — Ainda está naquela doceria?

Brinquei com seu cabelo um pouco molhado. Ela sorriu e fez carinho em minha bochecha. — Sim. Preciso pagar minhas aulas de piano e outras coisas.

— Falando nisso, precisa praticar mais. Quando será a estréia dessa peça que você toca?

— Daqui dois meses, por isso tô de substituta nessa. —Passou a língua pelos lábios e olhou para minha boca. Ela queria um beijo. Mas o seu nariz vermelho pelo choro me chamou à razão.

— Não, senhorita Camila. Seremos apenas amigas.

Me olhou magoada. — Ok, senhora Lauren.

— Ai, esse "senhora" me doeu.

— Perder oportunidades doem mais.

Nos olhamos por alguns segundos, ela pegou na minha mão. — Eu não posso ser apenas sua amiga sem benefícios, Lauren. Não há como ser só isso se já conheço o sabor da sua língua.

Se aproximou de mim e me beijou. Um beijo sedento, mas lento.  Subiu em cima de mim, uma perna de cada lado, ela sabia como me dominar, e eu gostava disso.

Gostava do jeito que ela me fazia sentir. Eu me sentia inteira, eu realmente estava ali.
Seu beijo sempre tão molhado era minha perdição, como parar algo que nos faz tão bem? Nossas línguas faziam uma dança particular, e ela mexendo o quadril sentada em mim me levava a loucura.
"Dame tu cosita" voltou a minha mente, lembrar dela dançando daquele jeito, me fez desejar que ela fizesse o mesmo, só que em mim, sobre mim. Ela tinha um poder sobre mim, isso era claro.

Eu ía ao céu toda vez que ela chupava minha língua e puxava meu lábio com o dente.Toda vez que ela tocava meu corpo. Puxei seu cabelo, expondo seu pescoço e dei algumas mordidas ali, sentia cada parte dela se arrepiando.

Suas mãos seguiram por minha cintura, indo em direção a minha calça. Segurei sua mão, interrompendo o beijo.
— Dale lento. Un poquito más lento.

Ela sorriu. — Não sabia que falava espanhol.

— Disse que tem muita coisas que você não sabe sobre mim. Assim como tem coisas que ainda não sei sobre você.

— Así que ven y descubre más cosas. — Ela abriu o moletom, estava usando um biquini, biquini da Dinah, por sinal.

E me beijou novamente, sorrindo durante o beijo. Senti sua mão abaixando minha calça, ela estava me levando a loucura, como sempre fazia.

Toquei seu corpo, estava quente, o frio da piscina era apenas uma lembrança. Desenlacei seu biquini, e então me dei conta que nunca tinha dado atenção a aquela área específica. Tomei seus seios em minhas mãos, enquanto ela rebolava em cima de mim. Sim, ela tinha total poder, eu faria tudo que ela quisesse naquele momento.

Mas o telefone dela vibrou na gaveta da minha mesinha. Ele havia tocado várias e várias vezes.

Parei nosso beijo.
— Não, Camila, é sério. Não estamos bem, não vamos fingir que estamos.

Sim, sou um pouco complicada. Tenho problemas de confiança.

— Então não sei o que você quer de mim, Lauren. — Saiu de cima de mim— Já respondi suas perguntas, já me abri pra você. O que mais você quer? Ah, quer saber?

Se levantou de rompante da cama, indo em direção ao banheiro, retornou com suas roupas úmidas, tentando vesti-las.

— Camila, espera. — Fui até ela, pegando as roupas em suas mãos. — Toma um banho, pode pegar uma roupa minha. Vai embora assim não. Vamos resolver as coisas.

— Eu estou tentando resolver! — Me apontou o dedo. — Você que tá complicando tudo!

Apenas a observei por alguns segundos. Ela estava agitada de novo. — Toma um banho, depois que você sair vamos conversar, ou então eu te levo pra casa.

— Não vou pra casa, trabalho hoje.

— Então eu te levo no trabalho.

— Meu celular tá ali dentro, não consegui abrir.

Olhei para a mesinha. — Não está trancada. Só que essa é automática.

Fui até a mesinha, toquei em cima e ela abriu. Camila me olhava com os olhos semosserrados, é... ela tinha razão em ficar chateada comigo, como que ela iria adivinhar isso sobre a gaveta?

Ela pegou o celular, deu alguns passos aleatórios, e entrou no banheiro novamente. Ouvi o barulho do chuveiro, meu coração estava acelerado. Eu não sabia o que fazer. Camila as vezes me deixava tensa.
Desci as escadas, indo em direção a Dinah.

— Mas tá mais branca que o normal. O que aconteceu, Pinoquita?

— Acho que a Camila e eu discutimos. — Vi a boia vazia de pinguim e lembrei que esqueci a bomba.

Dinah saiu da piscina, deixando o Nathan boiando com suas mini boias nos braços. — O que aconteceu, mulher?

— Não sei direito. Conversei com ela, ela se explicou, depois chorou e então conversamos. Aí nos beijamos, e depois, não sei direito. Ela ficou nervosa e ia embora.

Dinah me olhou por alguns segundos. — Você afastou ela, não foi? Lauren, você precisa tratar isso! Precisa parar de ficar afastando as pessoas sempre que fica mais íntima delas.

— Mas... você viu o que ela fez?

— Ela bebeu, e daí? Ela ainda é uma adolescente, nós já passamos por isso. Olha o tanto de vezes que você vai me buscar bêbada até hoje, qual o problema? Para de ficar procurando problemas pra afastar ela.

— Não era você que ontem mesmo falou que tinha um problema com ela?

Dinah deu de ombros. — Conversamos hoje. Vim aqui reclamar com você sobre o Brian, você estava apagada na cama, ela me deu alguns conselhos bons. Tô gostando um pouquinho mais dela.

Dinah gosta dela.

— Volta lá, conversa com ela. Se entendam. Se não for pra ser algo mais. Que sejam boas amigas.

— Tem um... cara muito estranho que mora com ela. Foi estranho. Fui levar ela em casa e ele segurou o braço dela de uma forma muito estranha.

— E você não fez nada?

— Fazer o que? Eu nem conheço o cara.

— Era uma boa oportunidade de conhecer, apresentar seu punho ao nariz dele, sei lá.

Revirei os olhos. — Ela o conhece, ela permitiu ele a tratar assim. Eu não conheço a história a fundo pra me meter.

Dinah me olhou decepcionada, me deu uma pontada dolorida em algum lugar dentro de mim. — Lauren, as vezes permitimos que as pessoas nos tratem de determinada maneira porque queremos; as vezes aceitamos certos tratamentos por não termos escolhas. Você melhor que ninguém sabe disso.

Fiquei alguns minutos refletindo sobre isso. Sim, a falta de escolhas cria emergências, e raramente sabemos como lidar com emergências.
Isso me levou a conclusão que eu precisava pedir desculpas, tentar resolver as coisas com a Camila. Ela estava colaborando, eu que compliquei tudo.

Dinah me chamou, estava com uma cara feia olhando para o celular.

— Lauren. Tem um tal de Antônio lá no estúdio. Ele tá bem nervoso querendo falar contigo.

Pensei por um tempo. Quem seria esse Antônio? Então me lembrei do Buck da boate, ele disse que "Antonio Sabàto" era o contato de emergência da Camila. O que esse cara poderia querer comigo?

Me levantei, indo em direção ao meu quarto. Estava silencioso. Não havia ninguém lá, nem no banheiro. A roupa dela havia sumido, assim como ela.

Liguei na portaria do condomínio, o porteiro me confirmou que ela havia saído a pé e entrado em um uber.

Ela não deixou nenhum recado, nenhuma mensagem, nada. Apenas saiu e me deixou. Acho que fui bloqueada nas redes sociais também.
A vida é uma eterna espera, e tudo que espero no momento é resolver isso.

Intersex - a história  de LaurenOnde histórias criam vida. Descubra agora