𝗭𝗼𝗺𝗯𝗮𝗿 𝗲 𝗲𝗻𝗴𝗮𝗻𝗮𝗿

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Fazia tempos que não ficara tão ranzinza, irredutível para qualquer forma de comunicação e ingerindo litros de whisky logo pela manhã. Takeshi Kovacs havia sido atingido pela flecha do orgulho e ignorava as investidas e trabalhos enviados por Ortega.

Esperaria um século sentado e atordoado pelos próprios pensamentos do que ligar para Amanda, mesmo que ainda era abominado pela última vez que se comportara daquele jeito. Já alucinava de saudades, foi o que sua mente embriagada concluiu vendo a sombra familiar se arrastar em seu apartamento.

— Não sabia que fantasmas podiam se machucar.

De repente seu copo pareceu bem mais leve, sua mente lenta e tudo desacelerava quando ele a via. Como ela parecia frágil pela madrugada. Havia sido assim ontem, havia sido assim durante anos e séculos, ela o tornava um garotinho assustado ao saber pela primeira vez que o mundo um dia acabaria. Os cacos no chão se espalharam enquanto seus olhos esbugalhados fitavam os machucados da mulher.

— Puta merda, você esqueceu como revidar? — grunhiu, interrompido pelo corpo que desabou sobre suas pernas choramingando. — Ei, ei, calma, eu te peguei, querida. — Carregou a Craster gentilmente até sua cama. A mulher não apresentava explicações, não conseguia formular uma única frase ou dizer onde estava Anne, só aceitava cuidar de seus machucados antes de dormir pelo cansaço.

Takeshi contemplava a mulher de cabelos rosas dolorosamente, temia a piora de seu estado e o paradeiro da garota nanica. Seus cabelos desgrenhados indicavam o estado de sua preocupação, a insônia vinha lentamente o arrastando para aguentar a noite fria que lhe causava um arrepio na espinha, mas talvez sentia algo diferente, o mesmo pressentimento da noite da queda da nave, e isso o assombrava.

— Agora você é o meu fantasma.

— Agora você é o meu fantasma

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Odiava ser mantida viva. Odiava não ter a vida normal em um lar. Odiava ter que tomar as rédeas da situação. E odiava ainda mais a sensação nauseante que trocar de capa lhe proporcionava, a dor continuava, mas os machucados não, embora suspeitasse que tivessem quebrado o nariz dessa também. Estava perdida, chorava e berrava por mudanças nas paredes cinzas e a libertação das correntes, mas tudo se resumia em encarar os leves traços refletidos por entre as cortinas de plásticos.

Algo a forçava a dormir insistentemente, uma vontade incontrolável depois do apagão acompanhada de pensamentos que não eram de Amanda, talvez estivesse drogada, mas aparentavam possuir a resistência própria da consciência e ela receava os sonhos vívidos que essa dor lhe causava.

Chacoalhava a cadeira até tombar de encontro ao chão, com uma das mãos livres de grossos tecidos tentou vagarosamente se arrastar pela sala, estava alheia do movimento exterior, sem proteção e com apenas a oportunidade insana de fuga. Entregava todas as suas forças à porta com frestas brilhantes e o barulho de dezenas de vozes ressoando na estrutura de mogno.

Quando trêmula alcançou a maçaneta, Amanda colidiu com o mundo cruel dos olhos que a fitavam, alheios ao sofrimento do mundo, os matusas organizavam a mais estranha das festas para comemorar a captura da garota. Um grande banquete servido com vista para o céu estrelado, cortinas negras e lustres minuciosamente limpos enfeitavam a sala e convidados adornados com máscaras horrendas de animais selvagens, roupas caras e histórias fajutas de suas famílias que carregavam na ponta da língua para se vangloriar de cada pedra que haviam pisado, o lugar em que poder e bajulação não haviam limites e todas as atenções se voltavam para o pequeno empecilho de sua festa.

Um aperto em seu braço a fez voltar à realidade, tentou se livrar das mãos fazendo com que a cadeira acertasse o corpo do convidado e seu corpo fosse ao chão, mulheres assustadas corriam entre a movimentação dificultando guardas, mas dando tempo o suficiente para que Amanda levasse um ao chão e empunhasse a arma roubada. Um, dois, três guardas abatidos enquanto a surreal fantasia desmoronava, a mulher observava pela última vez enquanto o líquido escarlate escorria até mesmo de si e se pôs a procurar a garota.

O barulho de portas sendo abertas aos solavancos inundou o salão, a cada espaço vazio era um aperto em seu coração. Ofegava, com lágrimas não conseguia enxergar e tudo o que restara a ser feito foi descansar apoiada nas paredes vermelhas que lhe afastavam do que nunca pensara ter virado seu novo lar.

"A GRANDE SOLUÇÃO DO MUNDO"

Em letras grandes a frase era emitida em hologramas pelo local enquanto uma melodia de esperança e revolução era tocada, haviam grandes retratos de Anne sem esboçar um sorriso para as câmeras, em um dos quadros a família Bancroft em peso estava atrás a si posados com os braços levantados em direção ao observador e vestidos com as cores da bandeira americana. Representavam a mensagem de inovação e acolhimento para quem quer que precisasse, mas não transmitiam a veracidade que um ídolo deveria ter.

Matusas tinham orgulho do que criaram, mas ainda era confuso para Amanda associar o que o objeto central de captura da maioria das fotos significava, a ausência do cartucho cortical. A sequência de hologramas e fotos estendia-se por todo o novo corredor, distraída, ela ingeria aqueles registros com o amargor crescente. Famílias pobres, construções destruídas, reconhecia até mesmo os subúrbios que frequentava, os rostos que cumprimentava, e por fim uma mãe com um recém-nascido, traços de suor em sua pele e o instinto materno aflorando em seu olhar. Ela nunca saberia como sua filha crescera, mas sequer imaginaria que o que lhe foi roubado seria devolvido a outros braços amorosos.

Com o cartão dos corpos conseguiu acesso a outro corredor frio como uma câmara de carne, a simples camiseta e as calças surradas não mantinham sua temperatura e logo estava tremendo até os ossos, indo cada vez mais fundo em direção à toca do coelho

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Com o cartão dos corpos conseguiu acesso a outro corredor frio como uma câmara de carne, a simples camiseta e as calças surradas não mantinham sua temperatura e logo estava tremendo até os ossos, indo cada vez mais fundo em direção à toca do coelho. A abertura da sala resultou em um apagão e nem socos ou a faca enferrujada conseguiam desativar a fechadura, restaram apenas os feixes azuis que iluminaram o círculo de tubos no local. O interior dos recipientes era revelado ao se aproximar, capas em perfeito estado descansavam à espera da consciência, mas estava horrorizada observando uma capa familiar, o rosto velho e cheio de vincos da vendedora de brinquedos repousava pacificamente a sua frente.

Sentiu estar sendo enganada novamente, de estar fora do controle de seu próprio corpo, talvez seus demônios a tenham escutado e tramado sua derrota, pois, não tão distante de si, havia outro tubo em que uma réplica de seu corpo zombava e questionava sua própria existência, afinal, quem disse que ela era única no mundo?

𝗡𝗜𝗚𝗛𝗧 𝗖𝗜𝗧𝗬 | takeshi kovacsOnde histórias criam vida. Descubra agora