Capítulo 4. Memórias

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28 de agosto de 1904.
Porchay [diary]
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Seria mentira da minha parte, se dissesse que voltei a dormir tranquilamente, depois de tudo que aconteceu noite passada? Provavelmente sim.

Depois que encontrei aquele homem, era como se minha mente só pensasse no mesmo. Todas as minhas tentativas de fechar os olhos, para assim tentar adormecer, faziam com que reproduzisse sua exata imagem na minha frente, o que me impediu de dormir até que os primeiros raios de sol aparecessem e tomassem conta de todo o quarto.

Já que eu não conseguiria dormir nem se eu tentasse mais, resolvi levantar da cama e procurar algo para comer, já que meu estômago roncava.
Nem tinha me dado conta de que não tinha me alimentado no dia interior.

Fui para a cozinha que era pequena apesar do tamanho da casa.
Era minha segunda vez naquele cômodo, o que me pareceu estranho já que eu estava morando lá a mais de uma semana. Entrei no local apenas uma vez para arrumar alguns utensílios básicos que trouxe comigo.

Não era como se eu não tivesse me alimentado nesse tempo. Antes de toda a mudança, Tankhun me obrigou a trazer uma grande cesta com frutas e entre muitas outras coisas que seriam capazes de me alimentar por meses, sem exagero nenhum. A mesma havia ficado sobre uma pequena mesa que ficava na sala então não havia muita necessidade de ir até a cozinha da casa.

O cômodo é pequeno mas bem aconchegante.

Me lembra minha avó.
Embora que eu não tenha muitas lembranças de minha infância, lembro exatamente de como ela era. Uma senhorinha muito gentil, extremamente carinhosa e que eu adorava quando ela fazia bolos para mim. Me lembro de quando experimentava os novos sabores que ela criava. Se eu estivesse triste, aquilo conseguia colocar um sorriso enorme no meu rosto.

Eu amava essa sensação.

Não consigo me lembrar quando foi a última vez que a vi antes da mesma falecer a alguns anos, mas lembro de um dia em específico.

Eu estava quieto, o que era bem de costume, mas naquele dia estava pior.
Porsche teve que viajar para a Inglaterra, para fazer uma espécie de estágio em uma boa universidade e ser capaz de assumir os negócios da família. Ele teria que passar quase um ano fora, o que me obrigara a passar esse tempo com minha avó, já que mamãe e papai estavam ocupados com negócios em outro estado.

Não era como se eu não quisesse ficar lá, já que minha vó era maravilhosa. Mas eu sentia falta do meu irmão. Nós SEMPRE fomos muito grudados e ficar tanto tempo sem o ver foi o que me deixou pra baixo por vários dias.

Eu estava sentado no chão ao lado da porta da cozinha enquanto observava minha avó fazendo mais uma de suas ideias mirabolantes para novos sabores de bolos. Era incrível ver como que vários ingredientes que não tinham nada a ver um com o outro, podiam, juntos, se transformar em um sabor tão único e harmonioso.

- Vovó.

- Sim, querido? - respondeu a senhora gentil enquanto batia mais uma massa de bolo.

- Por que quando a senhora mistura coisas que não tem nada a ver uma com a outra, fica tão gostoso? - pergunto curioso ao ver toda a estranheza desses ingredientes.

- Essa é uma pergunta que eu não tenho resposta, mas você gosta do sabor final, não? - ela parou o que fazia para se virar em minha direção com um sorriso acolhedor no rosto.

- Claro! Tudo que a senhora faz fica muito bom, mas eu ainda me pergunto como canela e morangos quando se misturam ficam bons...

- Hum... - ela pareceu pensar um pouco antes de continuar. - Eles são realmente ingredientes que são o completo oposto um do outro, mas isso não significa que não podem ficar juntos. As pessoas também são assim, se você reparar. Seus pais mesmo. Eles não são completamente diferentes?

- Sim, deve ser por isso que eles vivem brigando... - respondo abaixando minha voz no decorrer da frase, abraçando minhas pernas.

- Mesmo tendo tantas diferenças, eles que são completamente distintos, não deram a luz a você e a Porsche, que são uma incrível junção dos dois? - ela disse soltando uma pequena risadinha no final.

- Vovó! Eu não sou nada parecido com eles. - protesto meio bravo. A senhora solta a travessa com a massa do bolo, encima da bancada a sua frente e vem andando até minha frente, onde para e se ajoelha no chão junto a mim.

- Você pode achar isso, mas é teimoso igualzinho sua mãe. - Ela faz um carinho, um pouco bruto demais para se fazer na cabeça de alguém porém ainda carinhoso, em meus cabelos. - Se reparar Porsche é idêntico ao seu pai.

- Mas ele não é nada parecido com o papai.

- Não digo em questão de aparência, - ela diz soltando uma risadinha paciente. - mas sim em seu jeito de ser.

- Como assim? - pergunto um pouco confuso.

- Sua personalidade. Seu pai é uma pessoa muito extrovertida e esforçada, enquanto sua mãe é introvertida e mais fechada.

- O que é uma pessoa fechada, vovó?

- Bom, geralmente são pessoas que não conseguem expressar seus sentimentos e os guarda para si, não importando se são ruins ou bons. Porém chega um momento que ela fica sobrecarregada e acaba soltando tudo de uma vez só. E por isso eu acho você igualzinho a ela.

Quando a última frase foi dita, eu pude ver um sorriso grande se formar em seus lábios. Aquele tipo de sorriso que faz os olhos quase se fecharem.

- Bom, agora chega de conversa sentimental até porque você ainda é uma criança, e crianças não deveriam se importar com essas coisas.

- Eu não sou mais criança, vovó! Já tenho 10 anos! - digo mostrando para ela os meus dez dedos nas mãos.

- Então já que você não é mais criança, por que não me ajuda a terminar de fazer o bolo? Quer que eu te ensine?

- A senhora vai me ensinar a misturar canela e morangos em um bolo gostoso que nem o seu? - pergunto animado.

- Claro, querido. - ela responde com o uma risadinha enquanto se levanta do chão me estendendo sua mão gentil.

Talvez ela não estivesse errada.

Com o passar dos anos pude perceber ainda mais o quanto sou igual a minha mãe. Sempre guardando meus sentimentos dentro de mim e quando não aguento mais, acabo virando um emaranhado de confusões.

Eram boas lembranças no final das contas. E eu me sentia aliviado por ter essas lembranças no meio de tantas decepções e tristezas da vida. Afinal, essas mesmas memórias são o que me levaram a acreditar que a vida é algo além de péssimas recordações.

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Beast of the FlorestOnde histórias criam vida. Descubra agora