Vênus Sucking Cupid

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Abri meu estojo de couro marrom surrado sobre a mesa de inox do laboratório, retirando somente as ferramentas que iria utilizar. Iniciei o ritual que sempre precisava seguir, na ordem em que meu cérebro dizia ser aceitável, de higienização da bancada de trabalho e testes das luzes que utilizaria no processo. Com cuidado, passei a tela para a mesa posicionando-a milimetricamente no centro, passando a luz negra sobre toda sua extensão a fim de identificar todos os problemas presentes na obra.

O problema comum observado em todas as obras que chegam ao laboratório do MoMa, é o mesmo: verniz velho espesso que altera a cor e brilho original da composição; alguns craquelados e fissuras na tela também puderam ser vistos, algo comum de se ver em uma obra tão antiga.

Coloquei as luvas, máscara e lupa de cabeça, antes de pegar um swab. Molhei-o dentro da embalagem de químico para limpeza do verniz; comecei a passar delicadamente o produto sobre a tela, vendo o algodão se encher de resíduo marrom amarelado.

Fazia pouco mais de dois meses que havia retornado para Nova Iorque, após dois meses de trabalho na cripta de Anagni. Terminamos a restauração das paredes e abóbadas com bastante elogio de Enrico ao nosso superior. Fiquei tão feliz com o resultado e toda a aclamação que recebemos, que senti finalmente estar realizada no que fazia.

Depois daquele final de semana em Roma, Max partiu para seu novo destino e não nos falamos desde então.

O que não significava que havia tirado a ruiva da cabeça.

Cada segundo dos meus momentos ociosos, pensava em Mayfield e naquele beijo que trocamos. As coisas ficaram um pouco estranhas no restante do final de semana, mas apreciei cada segundo ao lado dela. Em sua partida, apenas nos abraçamos apertado em despedida, onde tentei gravar todas as notas de seu perfume na memória. Não trocamos número de telefone, redes sociais, nem nada. Will havia me dito que por uma conversa que tivera com a ruiva, percebera que Max era muito reservada em sua vida privada, tendo apenas o aplicativo de mensagens instantâneas baixado no celular. Mesmo assim, procurei seu perfil no Instagram durante longas semanas, fracassando totalmente na missão.

Hoje estava aqui, descontando minha frustração no trabalho.

MoMa havia recém adquirido a pintura "Cupido chupando Vênus" de Lavinia Fontana, e minha missão era restaurá-la para que em alguns dias o museu pudesse a expor em seu acervo fixo. Gostava muito de pegar restauração de obras de artistas mulheres, visto que a arte sempre foi um campo bem machista. Principalmente no período Renascentista, onde fora produzida a obra em questão.

A pintura foi produzida na Itália e datava de 1610, em óleo sobre tela de linho. Uma obra extremamente competente de uma das poucas mulheres que conseguiu desenvolver qualquer atividade artística na época. A visão que se tinha da mulher durante o período era de desqualificação para atuar em quaisquer campos intelectuais.

Dizem alguns estudos que a sociedade patriarcal se consolidou durante o feudalismo, quando os homens começaram a entender a sua importância como participante ativo na reprodução feminina; com divisão das terras feudais e aquisição de bens materiais, entenderam a importância de ter um sucessor para herdar tudo o que construíram com seu trabalho suado. No Renascimento, essa ideia de que o homem seria mais "importante" em qualquer papel intelectual na sociedade, veio com ainda mais força.

Um exemplo disso na arte, é de que a mulher poderia até pintar, mas seria assistente dos pintores homens (muitas vezes seus maridos ou eram amantes destes) para aprender com eles sem ter qualquer obra valorizada, além de não terem autorização para fazer estudo de nu artístico. Alguns até se apossavam das obras desenvolvidas por essas ajudantes e assinavam como deles, que foi o que aconteceu com o famoso "gênio" Rodin. Muitas das obras aclamadas e assinadas como dele, eram de sua assistente e amante Camille Claudel.

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