Capítulo I - Sonhos de magia e arrogância

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Contagem de palavras: 882

ENTRADA NO DIÁRIO DE ARTUR LARA

Eu sonhei de novo. Não sei qual foi a causa desta vez, não aconteceu nada de especial ontem. Nada que já não tenha acontecido antes sem me fazer sonhar.

Aliás, sonhar não; essa palavra dá ideia de fantasia, de devaneio. O que eu tenho são visões. São coisas muito estranhas, mas reais. Não importa o quanto digam o contrário, o que eu vejo ao dormir não é ficção sem importância, muito menos loucura!

Mas estou me afastando do tema, vou logo escrever o que aconteceu antes que a memória me traia.

Como sempre, eu era ele. Ele não era um guerreiro, ainda não, ou talvez não mais. Ahh, céus! Como é difícil saber as ordens dessas visões. O que sei é que ele não era um guerreiro, porquê não senti o peso de sua armadura ou o calor esquisito de seu manto.

Mas eu senti todo o resto, como sempre sinto. Senti o chão sob os meus pés, cheio de pedras que incomodavam. Senti o cheiro próprio das manhãs, o calor do Sol e a brisa preguiçosa. Ele estava em meio ao mato e as rochas, seguindo por uma trilha que se elevava mais e mais. Seguia subindo uma montanha.

Como sempre, eu estava lúcido. Nunca pensei muito a respeito, mas é uma experiência bem estranha existir assim. Eu era apenas uma consciência. Naquele momento, eu era uma consciência acompanhando o homem, sentindo o que ele sentia, mas sem perder os meus sentimentos e pensamentos próprios.

E eu, na minha lucidez, me senti incomodado. Algo me dizia que eu não deveria estar ali. Algo daria errado a qualquer momento. Perigo, muito perigo. A sensação foi a mesma de quando a gente é criança e fica, por algum motivo, por um algum tempo, no escuro. Não sabemos do que temos medo, ou melhor, de quem, mas sabemos que está perto e que está nos vendo e que é mau. Fiquei desesperado.

É raro que isso aconteça. Geralmente as coisas são confusas, divertidas ou interessantes com ele, mas não assustadoras. Eu quis acordar, quis me desprender dele e sair dali eu mesmo, mas não consegui.

De alguma forma eu sabia que ele sentia aquilo também. Ele percebia a mesma presença que eu, tenho certeza. Mas eu não senti inquietação alguma vinda dele. Pelo contrário, eu senti...não sei, um sentimento de desprezo, de irrelevância... Ah, sei a palavra certa: "Absurdo"! É uma boa palavra para o que vi no coração dele: uma noção de que aquilo era uma situação absurda. E tinha zombaria também, uma vontade de rir de alguém que faz algo ridículo.

Estou ouvindo passos, parece que as pessoas estão acordando. Vou escrever rápido antes que alguém venha e bata na porta.

Vou pular um pouco da história: chegamos ao topo da montanha. Vi pelos olhos dele uma imensidão de cores. O azul do céu, a mistura de laranja e amarelo que é o nascer do Sol e o verde e o cinza combinados nas incontáveis montanhas menores da paisagem.

As pessoas normalmente se sentem pequenas com a imensidão do mundo, eu me senti pequeno, mas ele não. Eu senti seus lábios se curvarem em um sorriso. Senti uma sensação de grandeza, de importância, preenchê-lo.

A próxima coisa que senti foi sua perna mexendo em direção ao nada. Tentei pará-lo e quando não consegui tentei acordar. Tentei sair daquele corpo, mas falhei. Ele caiu. Nós caímos.

O vento não era mais uma brisa preguiçosa, era como uma parede invisível que nos empurrava para cima. Respirar era impossível, o ar parecia ser algo sólido. Ele fechou os olhos e...apreciou. 

A sensação de despencar sem nem conseguir respirar me enlouquecia, mas era divertimento para ele. Alguns segundos se passaram, alguns poucos momentos que pareceram eras, e então algo mudou.

O vento começou a empurrar nosso corpo com menos força. O barulho do ar passando pela  orelha dele também diminuiu. A força e o barulho estavam lá ainda, mas eram mais fracos. E foram diminuindo mais, até não existirem.

Senti o vento batendo no seu rosto gentilmente e senti - com alívio imenso - o ar entrando em m̶e̶u̶s̶ ̶p̶u̶l̶m̶õ̶e̶s nos pulmões dele (fica difícil diferenciar eu e ele, compartilhar o mesmo corpo é uma coisa que me confunde). Ele abriu os olhos. E então eu vi. Estávamos logo acima de um lago. Uma imensidão de azul tão escuro que quase chegava a ser preto. Consegui ver seu reflexo lá, uma forma geral.

Mas antes que eu pudesse ver bem, o seu corpo se moveu, não para baixo ou para cima, mas para o lado. Não entendi o que estava acontecendo. Nosso corpo deslizou livremente pelo nada, sem nem ameaça de despencar. Ouvi uma risada animada e então disparamos rápido. Nos movíamos para a direita e para a esquerda, para as nuvens e então quase para o chão. A gravidade tornou-se uma piada e o vento deixou de resistir a nós.

Eu me movia ao meu bel prazer. Quando queria desviar de uma rocha grande inclinava um pouco meu corpo e desviava dela por uma grande margem. Todas as direções eram possibilidades, toda a lógica era irrelevante. O ar se movia ao nosso redor como a água se move em volta do nadador, mas ainda mais suave que isso. Era a liberdade pura, um prazer sem igual. E então, logo antes de um mergulho no lago, eu acordei.




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