Capítulo X - Vermelho vivo

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Contagem de palavras: 1158

— Não acho uma boa ideia. Você não consegue usar magia, mas pode ter um pouco dela dormente no seu sangue. E o lago iria devorar isso como um lobo devora uma presa.

— Eu já me testei de todo jeito possível, não tem magia nenhuma em mim. Nem forte, nem fraca. Ativa ou dormente.

— Você ainda sentiria um frio terrível...

— Estou disposto.

Vendo o olhar tão determinado de Artur, Kailor desistiu de suas preocupações. Com um suspiro e um abano de mão, ele destruiu o desenho intricado no ar — Tenha cuidado.

O jovem Lara passou por Kailor, chegou a mesa e encarou a água. Ficar próximo de coisas relacionadas ao mago causava visões, talvez tocar a água gerasse uma também. Ele deixou o livro sobre a mesa, estendeu a mão, mas hesitou. A mão pairava no ar, tremendo de incerteza.

— Não coloque a mão toda, apenas a ponta dos dedos e não fique por muito tempo — disse o mais velho, vindo para o lado de Artur.

O outro assentiu e enfim colocou dois dedos na água. O frio veio mão acima, como um rio correndo ao contrário. E o arrepio veio em seguida. Tudo quanto era osso e dente enviou uma dor aguda e gelada, congelando e perfurando o cérebro. E tudo quanto era músculo começou a tremer.

A primeira vontade, por puro instinto, foi gritar e tirar a mão. Mas tanto a mão como os lábios não obedeciam. Ele só os sentia tremer.

Ele esperou que Kailor percebesse e o puxasse pra fora d'água, mas não viu o mago na sua visão periférica. Era muita dor e confusão, tudo parecia girar e sumir. Ele também não viu biblioteca e, um instante depois, não viu nem a mesa ou a caixa mágica com água fria. Outro instante se passou e ele sentiu a dor e o frio irem embora e viu tudo girar, girar e girar.

Quando tudo se acalmou, notou que estava sentado sobre uma pedra. Suas roupas estavam molhadas e a brisa o fazia sentir frio, foi a primeira coisa que percebeu. A segunda foi a paisagem: A pedra ficava à beira de um lago de águas azul escuras, com montanhas cercando o lugar à distância. Não era seu corpo ou suas roupas, eram do mago. Estava em uma visão. Estava no lago.

A terceira coisa que percebeu, e essa roubou a sua atenção, era que não estava sozinho. Na outra margem do lago, sobre o chão de pedrinhas, se sentava uma mulher. Não era humana, tinha certeza, mas parecia com uma.

Mais tarde naquele dia Artur escreveria em seu diário:

"Ela parecia estar meditando, com os olhos fechados e uma expressão serena. Estava em um estado de muita concentração, sem dúvida. O vento estava forte, jogando no rosto o cabelo cacheado que lhe caía pelos ombros, mas a expressão permanecia imperturbada. Como se o vento fosse algo distante, irrelevante.

Chamas dançavam ao seu redor, refletindo o vermelho e o dourado na água espelhada do lago. Eram esferas de fogo e serpentes de chama que surgiam e se moviam por aí, como se fossem vivas. E estavam por toda parte. Ao redor dela, sim, mas também voando e girando ao longe, nas outras margens do lago. Um grande controle, senti o mago pensar, maior do que dos Reis do Fogo do Oeste.

O brilho rubro e dourado também se refletia na pele dela. Para o olho leigo, a pele dela era comum, humana. Mas para o mago atento, sua pele era uma combinação de milhares de escamas marrons finas perfeitamente encaixadas. E vez ou outra, o brilho das chamas refletia em uma escama lustrosa demais.

E o mago ficou lá, observando. Cogitou ir embora, mas poderia tirá-la da sua concentração com uma magia de vôo e, mesmo que não fosse assim, não queria ir embora. Pensou em ir falar com ela. Gostou dessa ideia. Mas também quebraria a concentração da mulher e isso poderia ser catastrófico. Então se contentou em vê-la. Esperar até a meditação acabar.

Estava encantado. E eu sei bem disso porque eu também estava.  O vermelho escuro da camisa, o marrom da pele (ou escamas que imitam pele, que seja), o castanho encaracolado dos cabelos e o preto da calça, tudo se juntava para formar uma espécie de pintura. A mais bela pintura. Não era humana, realmente, mas isso era completamente irrelevante.

Quando achou que estava ficando desrespeitoso, o mago se concentrou na magia. Era incrível, realmente impressionante. Tanta magia de fogo sendo feita bem acima de um lago com muito poder frio, é impressionante. É algo que mortais não conseguem fazer, eu acho (nada disso faz muito sentido para mim, mas era o que ele estava pensando, então imagino que esteja certo).

E então ela abriu os olhos. A primeira coisa que fez foi ajeitar o cabelo que o vento jogava em seu rosto. Assim que fez isso pude ver seus olhos e ela notou os  ̶m̶e̶u̶s̶  olhos dele.

E eu me surpreendi. Eram os olhos da minha namorada. Minha primeira namorada, Elise. Toda vez que penso nos olhos dela (que eram verdes) vejo olhos vermelhos. Isso me fez errar em muitas cartas de amor e me deixou muito confuso. Mas era isso. Não eram os olhos de Elise, eram os dela. Foram eles que eu sempre vi. Olhos vermelhos... uma mistura de tons de vermelho em um par de íris, formando um vermelho lindo, vivo, como o da minha capa.

Eu vi esses olhos e então vi eles se arregalando. As pupilas diminuíram para um ponto minúsculo. Houve um barulho alto e então todas as chamas se apagaram de vez. O corpo da mulher lentamente tombou para trás.

O mago soube na hora o que tinha acontecido, se pôs de pé num instante. Quebra de concentração. Ver ele ali foi um susto. Um susto grande, grande até demais. Quebrou a concentração do feitiço, fez toda a magia que ela tinha levantado se voltar contra ela. Ele sussurrou uma palavra esquisita e pulou na água. Não afundou, em vez disso correu por cima dela como se fosse terra firme.

Chegou rápido do outro lado. E lá estava. Caída para trás, com os olhos ainda arregalados e o corpo tremendo. Ele colocou uma mão na nuca e a outra no pulso, uma para sentir a magia correndo e a outra para o sangue.

Um caos. Caos completo. Você já tinha saído da meditação... não deveria ter sido tão grave... Por que, por que, por que... O que diabos está acontecendo?!

Senti medo. Desespero. Algo tinha que ter dado errado antes de ela o ver. E então o susto piorou tudo. Toda força nela estava se tornando fraqueza. Ela estava morrendo e ele estava tentando impedir e estava falhando.

Despertei da visão antes de ver como tudo terminava...

Espero que ela não tenha morrido. Aqueles olhos, aquela cor viva... tem sido alegria e paixão para mim por muito tempo. Desde sempre, talvez. Seria terrível se o mesmo dia em que eu os conheci fosse o dia de vê-los morrer"


Através Das ErasOnde histórias criam vida. Descubra agora