Capítulo 1 - Parte 1

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Caminhei pelas ruas de Nagar com um capuz sobre a cabeça, aquela vida de eterna fugitiva estava começando a ser incômoda, mas não havia o que fazer, apenas segui adiante com minhas cinquenta peças de prata no bolso interno da túnica. Aquele dinheiro não era o mesmo que ter uma peça de ouro, contudo, ainda podia ajudar a alimentar as crianças do orfanato por algum tempo.

Subi no telhado de uma das torres de vigilância desativadas, os elfos tinham assumido o controle de Kondric por volta de seis séculos antes, mas cá estamos, as pessoas ainda viviam em uma situação complicada. Observei a cidade, comparando aquela parte escura e fria em que estava com o outro lado do rio que cortava a cidade em duas, luzes de diversas cores, o cheiro de comidas quentes chegava até ali quase como uma tortura aos famintos.

A nobreza de Kondric se baseava em guerreiros que lutaram ao lado da rainha elfa durante sua ascensão ao poder. Ela tinha desafiado os quatro coventries e para frear a guerra, as rainhas bruxas abriram mão de Kondric. Aquilo podia ter acontecido séculos antes, mas o caos que aquilo causou ainda nos impregnava, lobos, vampiros, humanos, fadas e tantas outras criaturas continuaram abandonadas desse lado do rio, dividindo o território com ratos e escorpiões.

Abri aquela parte falsa do telhado e tirei o vestido que estava dentro dele, troquei aquela roupa antiga de couro pelo vestido que costumava usar no dia a dia. Então desci do telhado e caminhei o resto do caminho em direção ao orfanato. Mesmo que as moedas estivessem bem presas, eu ainda conseguia ouvir um tilintar ocasional, o que me deixava atenta às ruas. Se uma bruxa conseguia ouvir aquilo, obviamente, outros ouviriam. Criaturas com audições mais abençoadas.

Eu tinha vinte e cinco anos quando passei pela cerimônia de maioridade dos quatro coventries, mas acabei me tornando uma exilada e os dez anos seguintes foram uma tentativa de me manter longe dos olhos das bruxas. Sangue real manchava minhas mãos e aquele tipo de traição não era esquecido. Uma bastarda órfã não teria argumentos que provassem sua inocência ou que agiu em defesa da própria vida.

Entrei no orfanato e meus pés me levaram pelos corredores em direção ao refeitório, onde as crianças comiam, a maioria delas eram crianças fadas que perderam os pais para a doença que assolou a espécie há cinco anos, as demais eram toda e qualquer criança que os pais deixavam ali, ou que era encontrada sozinha nas ruas.

Em minhas noites fora, eu tinha resgatado cerca de dez daquelas crianças para trazer ao orfanato.

Me aproximei da fada que estava atrás da mesa distribuindo as refeições.

— Onde está o mestre da casa? — perguntei.

— Na sala privativa — ela respondeu.

Eu peguei uma tigela com sopa que ela me ofereceu e segui andando pelo interior do lugar até estar em frente a uma porta de madeira pesada.

O orfanato nada mais era do que uma mansão decadente que tinha sido entregue aos cuidados do mestre pela realeza em algum momento do último século, não recebíamos muita ajuda do governo de Kondric, por isso, o mestre me ofereceu abrigo quando sugeri que podia trazer ajuda financeira para o lugar. O macho não me perguntava o que eu era ou como conseguia o dinheiro, apenas me agradecia sempre que levava uma quantia.

Encarei o corredor vazio, não havia decoração, apenas esferas de luz mágica que iluminação o corredor. Ergui o punho e bati na porta duas vezes.

— Entre — ele falou do outro lado.

Abri a porta de madeira e entrei no ambiente iluminado pelas esferas de luz.

O elfo do outro lado da mesa me estudou com os olhos prateados brilhando.

— Vana, que bom que voltou em segurança — ele comentou me olhando como se buscasse machucados que precisaria tratar.

— Acabei de retornar — sussurrei me aproximando da mesa de madeira sobre a qual uma pilha enorme de pergaminhos aguardava a atenção do macho. — Muitas contas?

Soltei a pergunta mesmo que fosse óbvio, espalhados pela sala empoeirada, havia pouca decoração, um quadro com uma pintura de criaturas reunidas em torno de uma fogueira e uma estante caindo aos pedaços com alguns livros sobre as prateleiras, sendo aqueles os únicos adornos realmente limpos do cômodo.

— Sente-se — pediu.

Aceitei o convite me sentando na cadeira em frente a escrivaninha, coloquei minhas tranças para as costas e apanhei a tigela com a sopa, engoli algumas colheradas da comida.

— Por conta da doença que afetou os faunos recentemente, precisamos gastar para trazer curandeiros do outro lado do rio, o que foi uma quantia exorbitante. Os remédios não custaram barato. A comida que precisamos estocar para o inverno está pela metade do que será necessário. Precisamos comprar roupas para metade das crianças estarem aquecidas nos dias frios. A casa precisa de alguns reparos que nossa magia não pode fazer e não temos verba para contratar alguns faunos para lidarem com o trabalho.

— Quanto será necessário para comprar as roupas? — perguntei tentando focar em uma coisa por vez.

— Creio que cinquenta totens podem garantir roupas quentes para os que realmente precisam — explicou o macho.

Enfiei a mão no bolso do vestido e peguei o saco de moedas que estava ali dentro. Coloquei o objeto sobre a mesa.

— Aqui, exatamente cinquenta totens — falei voltando a comer.

Fiador pegou o saco murmurando uma prece a Dana enquanto o fazia e abriu o objeto verificando as moedas.

— Sobre a comida... você consegue permissão do rei para caçarmos na floresta? Acho que uns dois cervos ou um urso realmente grande pode nos dar uma quantidade de carne e sangue suficiente para alimentar os vampiros e os lobisomens por um tempo. Com a permissão para entrar na floresta, podemos colher frutas silvestres e raízes para alimentar os demais.

— Já me adiantei e enviei um pedido ao rei, ele me permitiu entrar na floresta, mas apenas eu e mais uma pessoa — avisou.

— Mesmo com os orcs e todas as criaturas que tomaram o controle da floresta? — questionei terminando a sopa.

— Sim.

O elfo me encarou, colocando o cabelo sobre o ombro esquerdo. Fiador e eu tínhamos um acordo simples, eu tinha um teto e um esconderijo, em troca de ajuda financeira sem mencionar meus meios. Em troca eu não fazia perguntas sobre ele ou sobre o passado do elfo.

Pela forma como ele se portava, eu podia perceber que ele já foi um guerreiro, mas nunca perguntei se foi um soldado ou um bandido.

— Então iremos apenas nós dois? — questionei e ele me estudou.

— Você consegue lidar com isso? — perguntou e assenti em resposta.

— Sou boa com armas em geral — confessei.

— Então iremos os dois. Temos permissão de pegar até três animais e quantas frutas, raízes e vegetais pudermos carregar — esclareceu.

— E se toparmos com os orcs?

— Se toparmos com qualquer criatura que nos ataque, devemos fugir e lutar em último caso — enfatizou.

— Tudo bem — concordei.

— Você está bem? — Fiador questionou me estudando com atenção.

— Só estou cansada — admiti.

— Tente descansar um pouco. Nós dois saímos antes do alvorecer — avisou.

Me levantei da cadeira em que estive sentada e apanhei a tigela que estava em cima da mesa, meus pés me levaram para a porta, fazendo um barulho que me incomodava, mas aquele era o preço, cuidado com meus movimentos e todos os gestos, tudo que eu podia fazer para parecer humana.

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