Capítulo 3 - Parte 2

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Antes do nascer do dia eu me levantei, comecei meus exercícios físicos matinais. Ser uma bruxa das sombras era vantajoso, mesmo que houvesse luz forte do sol brilhando, sempre haveria sombras para usar, isso me deixava em uma vantagem contra a maioria dos adversários, mas minha magia era fraca contra magia de ossos.

Outro detalhe que eu precisava levar em consideração era o fato de que magia não é um recurso inesgotável, mesmo que eu nunca tivesse chegado perigosamente perto do limite de poder mágico, eu podia tatear a escuridão dentro de mim e conseguia encontrar o final do poder.

Meu corpo estar em forma me garantia mais tempo correndo em uma fuga, garantia que mesmo se eu não conseguisse invocar minhas lâminas das sombras, ainda poderia usar uma espada de metal.

Ser uma órfã no Coventry das Sombras me garantiu habilidades que a maioria das bruxas não poderiam desenvolver, dormir com os olhos abertos apesar de ser uma necessidade para não ser roubada ou espancada, também serviu para me garantir vantagem na hora de fugir das bruxas. Essa habilidade me deixou livre por cinquenta anos.

Respirei fundo quando terminei a última flexão e fiquei de pé, sentindo o suor escorrer pelas minhas costas, encarei a janela ansiosa pelo que a escuridão parecia sussurrar para mim.

Peguei um vestido e segui andando em direção ao banheiro, aquela sensação inquieta me subia mais e mais, se tornando cada vez mais torturante. Eu me perguntei o que estava vindo em minha direção dessa vez, a saída misteriosa de Fiador logo após descobrir meu segredo me fez questionar se o elfo me delatou.

Fechei a porta do banheiro com calma e enquanto a banheira enchia, eu me peguei pensando no que faria se o elfo traísse. Quando saí de South Witch, fui para o único lugar do continente em que estaria segura, mas as bruxas dos quatro coventries costumavam frequentar Cruinne.

Mergulhei na banheira e fechei os olhos, há muito tempo eu não utilizava esse poder, mas estava indo de encontro aos meus princípios, minha mente capturou a escuridão dentro de mim e a trouxe para a superfície, conectando a minha consciência com a escuridão do mundo ao meu redor.

Minha visão capturou detalhes de tudo que estava acontecendo na mansão simultaneamente, desde as crianças dormindo, aos adultos que estavam trancados em uma sala qualquer, me afastei dessas visões desnecessárias e continuei vasculhando o lugar até captar um macho sentado em uma cadeira, com olhos verdes iluminando o ambiente.

Eu o encarei e podia jurar que ele me descobriu na escuridão, quase como se estivesse vasculhando a escuridão naquele silêncio estanho. Me adiantei para retornar a mim e meu corpo afundou na água me fazendo emergir desesperada por ar.

Afastei o cabelo do rosto e saltei para fora da banheira, me sequei o mais rápido que meus dedos trêmulos pelo uso daquele poder me permitiram e enfiei meu corpo nas roupas que tinha separado para o dia.

Um momento depois, eu estava caminhando pelos corredores escuros da mansão enquanto trançava o meu cabelo com dedos ágeis. Quando cheguei a porta do escritório de Fiador, eu bati na porta duas vezes antes que ele me ordenasse entrar.

A madeira não rangeu nas dobradiças quando a empurrei, o elfo continuava sentado na posição que eu tinha visto anteriormente, mas os olhos estavam sem aquela luz mágica.

— Ouvi dizer que chegou — menti.

— Ouviu dizer? — perguntou com um sorriso curvando a boca dele calmamente.

— Sim, ouvi dizer — respondi.

Fiador se levantou e me estudou de cima.

— Convivi com seu tipo de magia por um bom tempo quando era mais jovem, eu sei o que senti que fez a minha magia alertar cada sentido do meu corpo — avisou.

Ergui os ombros numa tentativa de demonstrar o meu desinteresse por aquela conversa.

— Eu tive que ir até o castelo, reportar ao rei sobre a nossa missão na floresta e tudo que aconteceu lá — explicou.

— E ele deu algum tipo de punição pela morte do monstro? — questionei ao notar o tom de voz cauteloso.

— Não, nenhuma punição — respondeu.

Encarei o elfo tentando entender o que estava vendo nos olhos dele, Fiador suspirou pesadamente e me estendeu um pedaço de papel, eu não toquei no objeto, apenas observei as runas que estavam escritas nele.

Uma carta de uma infantaria de bruxas batedouras. Elas estavam avisando que viriam ao orfanato ver se havia crianças bruxas que Fiador poderia não ter notado.

— Quem é a líder dessa infantaria? — perguntei com cautela.

— Seu nome, pelo que dizia no envelope é Roemia — contou.

Meu corpo estremeceu ao ouvir o nome, Roemia e eu tínhamos treinado na mesma turma de bruxas, sempre tivemos uma rivalidade porque ela estava cotada para ser a próxima general de infantaria e eu era mais habilidosa que ela, mas o berço tem mais poder que a própria magia no Coventry das Sombras.

Engoli seco ao tirar os olhos da carta e encarar de volta os olhos verdes do elfo que me encarava esperando uma explicação.

— A conheço — expliquei.

— Quão habilidosa ela é? — ele questionou observando o meu rosto com cautela.

— O suficiente para ser um problema — admiti num suspiro.

— Vou sair por umas horas, devo voltar no fim da noite.

— Para onde vai? Tenho que apagar os rastros da magia que você usou aqui, ou podem captar sua presença.

— Não se preocupe, vou sumir por um tempo e vai ser mais fácil se livrar da presença da minha magia se eu estiver longe — avisei.

— Quero falar com você a noite — respondeu e eu concordei com a cabeça ao sair da sala do elfo.

Roemia estava rastejando até ali, eu só esperava que nenhuma criança fosse levada para o inferno do qual escapei por pouco.

Quando éramos jovens, Roemia estava particularmente determinada a me matar, apenas porque a competição comigo nos treinos a fazia parecer fraca, cada suspiro que eu dava nas arenas de treinamento de South Witch era como uma tortura para a atual general.

Roemia desceu baixo nas tentativas de me matar, desde incendiando a minha tenda diversas vezes, me obrigando a voltar a floresta para caçar animais e curtir peles em pleno inverno, até mandar me espancar para roubar algumas moedas.

No dia do nosso ritual, Roemia fez um acordo com as bruxas de ossos para que focassem todo o seu poder em mim, tornando o meu ritual uma luta por sobrevivência que terminou na situação em que me encontrava. Quatro princesas mortas e minha cabeça a prêmio.

Afastei minha mente das lembranças e me foquei no ponto realmente interessante ali, Fiador não só estava mantendo o meu segredo como também estava usando o próprio poder para mascarar o meu. Aquilo era algo sem preço naquela altura da minha vida, talvez pela primeira vez, eu de fato tivesse encontrado um amigo.

Caminhei para fora da mansão e apenas quando julguei ser longe o bastante, mergulhei nas sombras e ressurgi na entrada do Vale das Sombras, o cheiro daquele lugar fez o meu estômago embrulhar, cerveja velha, urina e vômito. O mercado de contrabando não era meu lugar favorito do reino, mas me manteria segura das bruxas que estavam chegando ao orfanato.

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