Hoje a pensão amanheceu num grande alvoroço. Acordei, tomei banho e desci. Deixei a Laurinha a dormir pois ainda era cedo. Estranhei o Miguel ainda não ter chegado.
Na sala de jantar, Júlia chorava em frente a dois policiais. Assim que me viu, correu a abraçar-me.
- Que foi mana? Que desespero é esse?
- Mataram o Miguel, Ju.
- O quê? Tu és doida?
- Sim, disse um dos policiais.
A senhora é a esposa dele?- Sou sim.
- O senhor Miguel foi morto esta madrugada numa rixa à saída do bar onde trabalhava.
- Não pode ser, disse Juliette. Não acredito.
- Verdade, senhora. Senão, não estaríamos aqui.
Juliette sentiu as pernas fraquejar e apoiou-se numa cadeira que estava por perto.
- Cuidado, senhora. É melhor sentar-se.
Infelizmente confirmou-se. Miguel havia sido baleado à saída do bar. Ao que tudo indica, tratou-se de um crime passional. Um outro elemento está hospitalizado em estado grave.
A polícia saiu e eu fiquei abraçada a Júlia a chorar. Fui chamada à realidade quando Laurinha desceu as escadas a chorar.
- Vem cá meu amor, disse limpando-lhe o rosto.
- Porque a mamãe e a titia estão a chorar?
- Estamos tristes, meu amor.
- Porquê? Cadê o meu papai? Eu quero o meu papai.
Eu tentava ser forte por ela, mas foi uma missão impossível. Levei-a de volta ao quarto e comecei a explicar o inexplicável.
Como é que se conta a uma criança de 5 anos que o pai não vai voltar?
Fiz o meu melhor e contei a célebre história das estrelinhas no céu.
- Eu quero ver a estrelinha.
- Só dá para ver à noite. A mamãe à noite mostra-te a estrelinha do papai.
Ela ficou um pouco menos confusa. Preparei-a e depois do café levei-a para o colégio. Precisava estar livre para os assuntos burocráticos e apoiar Júlia.
Desde a morte dos pais, Júlia cuidava de Miguel como de um filho. Sempre carinhosa com ele apoiava as suas escolhas. Só queria vê-lo feliz. Foi assim quando ele quis ser dançarino a abandonar os estudos e foi assim também quando nos casámos.
Dois dias depois, regressámos do cemitério. Miguel foi cremado e as cinzas depositadas onde jaziam os seus pais.
Júlia estava desolada. Eu tinha que ser forte pelas duas. Felizmente a pensão tinha muitos hóspedes e o trabalho ajudava a afastar as coisas ruins.
Arranjei uma senhora para me ajudar temporariamente pois Júlia vivia praticamente no quarto.
Hoje vim até à delegacia saber como anda o inquérito à morte de Miguel.
Tudo o que eles sabiam era que aparentemente Miguel mantinha uma relação com outro dançarino e o ex desse dançarino não aceitava o término da relação.
Esperou os dois à saída e baleou-os. Infelizmente Miguel morreu e o seu companheiro permanece em coma.
O assassino foi preso no local ainda na posse da arma.
Sim, eu sabia deste caso do Miguel. Eu sempre soube que ele era homossexual e só aceitei casar com ele para evitar o falatório por ser uma mulher grávida e solteira. Quando contei a Miguel da minha gravidez, ele logo se disponibilizou a assumir a Laurinha, embora já houvesse boatos sobre a orientação sexual dele.
Júlia, como sempre não se opôs e abençoou a nossa união. Apesar de tudo eu amava o Miguel. Não era uma paixão homem/mulher, mas à minha maneira eu amei-o e assim fomos felizes.
Todas as noites, Laurinha pedia para olhar o céu e fazer uma oração. Em noites de céu nebulado eu inventava que a estrelinha do papai estava a dormir e apenas rezávamos.
Miguel não foi o meu grande amor, mas eu tenho muita saudade e sinto-me muito só. Pela primeira vez eu questionei se há 6 anos, fugir foi a escolha certa.
Pela primeira vez eu olho para Laurinha e pergunto se foi justo o que fiz com ela.
Pela primeira vez eu me confesso a Deus pedindo perdão pelos meus erros.
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Escravo da saudade
Fanfiction"Foi grande a maldade, que você me fez, esqueça o passado volte ao meu lado, tente outra vez" " do álbum Na terra do pequi"