Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO

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Cumprindo a promessa que fizera ao senhor Meagles, Arthur dirigiu-se, um sábado, para Twickenham, onde o amigo possuía uma casa de campo. O tempo estava tão bom para a época, que preferiu fazer o percurso a pé e caminhava debaixo de um Sol radioso que aquecia a charneca. Mergulhado nas suas reflexões, depressa foi alcançado por um transeunte que o precedia e cujo vulto lhe pareceu, de repente, familiar.

— Daniel Doyce! Como vai - exclamou Arthur, dirigindo-se a ele.

O senhor Doyce encaminhava-se igualmente para a casa do seu amigo Meagles e a conversa entre os dois homens foi crescendo de animação. O inventor relatou a Clennam, muito interessado, os anos da sua aprendizagem, os seus trabalhos, as suas pesquisas e as dificuldades que se lhe depararam.

— Acho que, neste caso, ser-me-á necessário arranjar um sócio: até agora, tenho-me aguentado muito bem, mas estou a envelhecer, sou obrigado a ir com mais freqüência ao estrangeiro e não posso fazer tudo sozinho. Se houver oportunidade, falarei ao Meagles, que saberá aconselhar-me.

Chegaram, sempre conversando, à encantadora vivenda dos amigos. A casa estava circundada por um jardim magnífico, donde se via o serpentear de um rio. Logo que assomaram ao portão de ferro, toda a família se precipitou para os receber, isto é, o senhor Meagles, a senhora Meagles e a filha, Cherry.

Cherry tinha vinte anos. Espessos caracóis castanhos emolduravam-lhe o lindo rosto, de grandes olhos cintilantes e meigos e um sorriso terno e feliz. Numa palavra, era tão bela como encantadora.

A tarde passou-se agradavelmente em passeios e conversas. Quando Clennam voltou ao seu quarto, a fim de se vestir para o jantar, sentou-se diante da lareira, a refletir. A questão que o atormentava decerto se encontrava há muito presente no seu espírito, mas só agora assumia toda a sua acuidade: iria ou não apaixonar-se por Cherry?

Tinha o dobro da idade dela. Pois bem, que interessava isso? Sentia-se jovem de corpo e de espírito. Mas a questão seria verdadeiramente essa: Decerto o senhor e a senhora Meagles o aceitariam de bom grado para genro. Mas a jovem, que pensaria ela?

Ora, o senhor Clennam era um homem muito modesto, e quando fez a comparação dos seus méritos com os da bela Miss Meagles, ficou completamente desesperançado, mas, por fim, resolveu refrear os seus sentimentos para com ela.

À noite, após o jantar, pediu ao senhor Meagles que lhe concedesse meia hora para conversarem e retiraram-se para o escritório deste.

— Senhor Meagles, o senhor está ao corrente da minha situação; por causas várias, abandonei a empresa de minha mãe, e neste momento; precisava de arranjar outro emprego. Ora, vim a saber, pelo senhor Doyce, que este encarava a possibilidade de arranjar um sócio para o ajudar a dirigir a sua oficina. O senhor conhece-me: se acha que eu seria a pessoa indicada, gostaria que tivesse a amabilidade de o informar que me ponho à sua inteira disposição.

A proposta encantou o senhor Meagles, que prometeu falar no assunto, no dia seguinte, ao amigo.

Quando regressou ao quarto, Clennam pôs-se à janela e contemplou o rio, que serpenteava, tão tranqüilo, por entre os juncos e os nenúfares. E congratulou-se por ter tomado a decisão de não se afeiçoar a Cherry. Era tão bela, tão digna de ser amada! Como podia um homem de quarenta anos, tímido e grave, que em todo o lado se sentia um estranho, sem amigos, sem uma família acolhedora, sem fortuna, esperar conquistar aquela jovem? E, observando o rio, dizia para consigo que a água era bem ditosa por não conhecer a dor.

Na manhã seguinte, Arthur saiu antes do pequeno almoço, para ir admirar o campo das redondezas. Atravessou o rio na barcaça e passeou durante uma hora, depois voltou para o barco. um cavalheiro esperava já na margem, com o seu cão. Era um jovem de bela aparência, com cerca de trinta anos, rosto moreno e jovial. Todavia, Arthur ficou mal impressionado com a maneira brutal com que calcava o chão, dando pontapés nas pedras, e não lamentou ver-se livre da sua companhia quando desembarcou do outro lado do rio. Ao chegar a hora do almoço, Arthur enveredou pelo atalho que subia até à vivenda. Qual não foi o seu espanto ao deparar-se-lhe, no jardim, o jovem, a quem uma criada anunciava que Miss Meagles ainda não descera!

A Pequena Dorrit (1857)Onde histórias criam vida. Descubra agora