Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS

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Os recém-casados, à sua chegada a Harley Street, Cavendish Square, em Londres, foram conduzidos, pelo mordomo em pessoa, até aos luxuosos aposentos do primeiro andar, onde o senhor Merdle os aguardava para dar as boas-vindas à noiva e recebê-la na sua nova residência.

A senhora Sparkler, uma vez instalada nos seus aposentos - um santuário de penas, de sedas, de chitas da Pérsia e outros finos tecidos -, sentiu que o seu triunfo, até ali, era absoluto. Ocupara os próprios aposentos da senhora Merdle, que haviam sofrido alguns retoques, para os tornar ainda mais dignos da sua nova ocupante. E enquanto se pavoneava por eles, rodeada de todos os acessórios que o luxo proporciona, via-se prestes a eclipsar e a destronar a sua rival. Feliz Fanny! estava-o decerto. Agora já não falava em querer morrer!

Na manhã seguinte, o senhor Merdle mandou aprontar a carruagem para ir apresentar os seus cumprimentos ao senhor Dorrit, que se instalara num hotel de Grosvenor Square. A carruagem cintilava, os cavalos resplandeciam, os arreios brilhavam uma equipagem digna de um Merdle! Os transeuntes matinais olhavam-no quando rolava pelas ruas e diziam, com voz cheia de respeito:

— Lá vai ele a passar!

A chegada do banqueiro pôs o hotel inteiro e o coração do senhor Dorrit num desassossego; e, contudo, o importante homem mostrou-se como sempre tímido e pouco à vontade. Mal conseguia manter conversa, não sabia o que dizer nem que fazer do seu corpo volumoso e desajeitado. Porém, encantou o senhor Dorrit, ao convidá-lo a sentar- se à sua mesa e ao pôr o seu banco à disposição: o senhor Dorrit explicou que viera, com efeito a Londres, para, muito em especial, velar pelos seus interesses; procurava um banco onde depositar a sua fortuna, a fim de a fazer aumentar. O senhor Merdle ofereceu-se então para se encarregar desses depósitos e para que partilhassem dos lucros dos seus brilhantes negócios, o que, bem entendido, o senhor Dorrit aceitou com alegria! Depois, dirigiram-se os dois à City, o que para o senhor Dorrit foi um encanto, percorrer Londres na carruagem do ilustre banqueiro, diante de quem todas as cabeças se descobriam.

À noite, jantou na Harley Street, no meio de uma brilhante sociedade, que cumulou o casamento da filha dos mais veneráveis cumprimentos. No dia imediato, no outro e em todos os dias que se seguiram, teve ensejo de assistir a novos jantares e os cartões de visita não deixaram de chover sobre o senhor Dorrit. De forma que o seu orgulho aumentava de hora para hora; a promoção social que fruía graças àquele casamento subia-lhe à cabeça.

A única nuvem negra daquela estada foi o conflito que travou no íntimo, uma noite, quando regressava de carruagem: passaria ou não diante da Penitenciária, para rever o velho e familiar portão de ferro? Resolveu não passar por lá e surpreendeu o cocheiro com a violência com que se pôs a seguir pela Ponte de Waterloo, trajeto que o teria conduzido ao seu antigo domicílio. Mas a questão gerara dentro dele um conflito que o deixou vagamente descontente a noite inteira. Mesmo à mesa do senhor Merdle se sentiu pouco à vontade e envergonhava-se das idéias que lhe ocupavam o espírito, idéias tão deslocadas no meio de uma reunião tão distinta!

O banquete de despedida correu no meio de grande fausto e rematou da maneira mais brilhante a sua estada. Fanny aliava à sua juventude e à sua beleza uma tal segurança no seu papel de anfitriã, que parecia estar casada há vinte anos. O pai sentiu que a podia deixar, sem inquietações, trilhar os caminhos da distinção e desejou ter outra filha como aquela.

— Minha querida - disse-lhe, à despedida -, a nossa família conta contigo para, hum, manter a sua dignidade. sei que nunca a desiludirás.

— Não, papá - respondeu Fanny -, pode contar comigo. Transmita à minha querida irmã todo o meu carinho e diga-lhe que lhe escreverei em breve.

O senhor Merdle aproximou-se furtivamente do senhor Dorrit e insistiu em acompanhá-lo até ao fundo das escadas. Todos os protestos do senhor Dorrit resultaram em vão, teve a honra de ser acompanhado até à porta por aquele homem eminente que, como lhe repetiu o senhor Dorrit ao apertar-lhe a mão, o cumulara verdadeiramente de atenções durante a sua memorável visita. Desta forma se despediram e o senhor Dorrit subiu para a carruagem, a transbordar de orgulho com a grandiosidade daquela partida.

A Pequena Dorrit (1857)Onde histórias criam vida. Descubra agora