No meio de todo aquele vaivém, a casa da City mantinha a sua enfadonha tristeza: a doente continuava a levar uma vida monótona. Que pensamentos, que sonhos, que recordações, poderiam morar no aposento escuro daquela mulher? Ninguém sabia. Fhntwitch teria, porventura, sido o único a poder arrancar-lhe o seu segredo, se ela fosse menos inflexível! Quanto a Affery, contemplava, aturdida, a patroa e o marido e vivia aterrorizada.
Uma noite, concluíra a Pequena Dorrit um longo dia de trabalho no quarto da senhora Clennam e estava a pô-lo em ordem, para se ir embora, quando a velha, que cismava, sentada na poltrona, lhe pousou a mão no braço. A Pequena Dorrit ficou muito perturbada.
— Diz-me, Pequena Dorrit, agora tens amigos?
— Muito poucos, minha senhora. Além da senhora, apenas Miss Flora e. também outra pessoa.
— O senhor Pancks, talvez, - inquiriu a senhora Clennam, que achava as visitas daquele tão freqüentes como bizarras.
— Oh, não! Alguém muito diferente.
— Vamos - disse a senhora Clennam, quase sorridente -, nada tenho a ver com isso. Pergunto-te porque me interesso por ti! e porque fui tua amiga, julgo eu, quando não tinhas outras.
— Na verdade, assim é, senhora Clennam. Sem a senhora e sem o trabalho que me deu, nada nos restaria.
— Nós, - repetiu a senhora Clennam, de olhos fixos no relógio do marido. - Então quantos são vocês?
— Atualmente, apenas o meu pai e eu.
— Tu e os teus suportaram muitas privações? Perguntou ela, fazendo girar o relógio nas mãos.
— Por vezes tivemos bastantes dificuldades na vida -respondeu a jovem com a sua voz meiga -, mas decerto há muita gente em piores condições.
— Eis uma bela frase - respondeu a senhora Clennam com vivacidade -; és uma boa rapariga, sensata e reconhecida.
E, com uma doçura surpreendente, puxou o rosto da pequena costureira e deu-lhe um beijo na testa.
— Agora, vai-te embora, Pequena Dorrit, ou chegarás muito tarde a casa, minha pobre filha!
Affery, que espreitava pelo buraco da fechadura, por pouco não desmaiou de espanto ao contemplar esta cena. Acompanhou a jovem até à porta e em seguida ficou no alpendre, vendo-a afastar-se, ainda muito espantada. A noite estava tempestuosa e chuvosa, o vento fazia bater os postigos desengonçados e girar os cata-ventos enferrujados. Affery mantinha-se especada no alpendre, sem saber o que fazer, quando uma súbita rajada lhe fechou a porta nas costas.
— Meu Deus - gemeu Affery. - E a minha patroa lá dentro sozinha, sem poder abrir-me a porta!
Estava ali a choramingar, o nariz afundado no avental, quando deixou escapar um grito: uma mão acabava de se abater sobre o seu ombro.
Virou-se: atrás dela encontrava-se um homem envergando um trajo de viagem, um vasto manto e chapéu de pele. Tinha ar de estrangeiro, com os seus cabelos e bigodes de um negro de azeviche e o seu grande nariz adunco.
O terror de Affery provocou- lhe o riso e o seu rosto teve um esgar.
— Que tem você - perguntou, em bom inglês. - O que lhe meteu medo?
— O senhor. E a tempestade e tudo E a gota o vento, que me fechou a porta, não posso entrar.
— Ah Ah - retorquiu o cavalheiro, sem se comover. - Diga-me, boa mulher, conhece alguém por aqui chamado Clennam?
— Ô meu senhor, se conheço! Ela está lá dentro, paralítica e sozinha, e o outro malandro que também saiu e, oh, acho que vou endoidecer!
O forasteiro recuou alguns passos, para examinar a casa, reparando na longa e estreita janela junto da porta da entrada: