3° capítulo

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Assim que o hino acaba, somos colocados em custódia. Não estou dizendo que somos algemados ou qualquer coisa assim, mas um grupo de Pacificadores nos conduz pela entrada principal do Edifício da Justiça. Talvez alguns tributos tenham tentado escapar no passado. No entanto, nunca vi algo do gênero acontecer.
Lá dentro, sou conduzido a uma sala onde sou deixado sozinho. É o local mais rico em que estive em toda a minha vida, com carpetes grossos, um sofá de veludo e poltronas. Conheço veludo porque minha mãe tem um vestido cujo colarinho é feito desse material. Quando me sento no sofá, não consigo parar de passar os dedos sobre o tecido. Isso ajuda a me acalmar enquanto tento me preparar para a hora seguinte. O curto período que é permitido aos tributos despedirem-se das pessoas que amam. Não posso me dar ao luxo de ficar chateado. de sair dessa sala com os olhos inchados e o nariz vermelho. Chorar não é opção. Haverá mais câmeras de televisão na estação de trem.
Minha irmã e minha mãe chegam primeiro. Vou ao encontro de Ana e ela pula em meu colo, seus braços em volta de meu pescoço e a cabeça em meu ombro. Minha mãe se senta ao meu lado e nos abraça. Por alguns minutos, não falamos nada. Então, começo a dizer a elas todas as coisas de que deverão se lembrar de fazer agora que não estarei lá para fazer por elas.
Ana não deve pegar nenhuma téssera. Elas podem sobreviver, se forem cuidadosas, da venda do leite e do queijo da cabra de Ana, e do pequeno boticário que minha mãe agora administra para as pessoas na Costura. Gustavo vai pegar as ervas que ela não conseguir cultivar, mas ela deve ser bastante cuidadosa na descrição das plantas porque ele não é tão familiarizado com elas quanto eu. Ele também levará caça às duas, e provavelmente não pedirá nada em troca por isso, mas deveriam retribuir de alguma maneira, com leite ou remédios, quem sabe.
Não perco tempo sugerindo a Ana que aprenda a caçar. Já tentei ensinar a ela algumas vezes, e foi desastroso. A floresta a aterrorizava, e sempre que eu atirava em alguma coisa ela começava a chorar e a falar que a gente talvez conseguisse curar o ferimento do bicho se fôssemos correndo para casa. Mas ela cuida muito bem da cabra, e concentro-me nisso.
Quando termino com as instruções sobre combustível, trocas de produtos e sobre a importância de frequentar a escola, eu me viro para minha mãe e aperto seu braço com força.
– Escuta. Está me ouvindo? – Ela faz que sim com a cabeça, assustada com a veemência do gesto. Ela deve estar imaginando o que está por vir. – Você não pode se ausentar novamente.
Os olhos de minha mãe se fixam no chão.
– Eu sei. Não vou fazer isso. Não pude evitar o que...
– Bem, você vai ter de evitar dessa vez. Você não vai poder ir embora e abandonar Ana. Eu não estarei mais aqui pra manter vocês duas vivas. Não importa o que aconteça. Não importa ao que você assista na televisão. Você tem de me prometer que vai lutar! – Minha voz se transformou em um grito no qual estão contidos toda a raiva, todo o medo que senti no momento em que ela nos abandonou.
Ela puxa o braço, agora ela mesma demonstrando raiva.
– Eu estava doente. Podia ter me tratado se naquela época eu tivesse os remédios que tenho hoje.
Essa parte da doença talvez seja verdade. Depois desse período, eu a vi curando pessoas que sofriam da mesma tristeza paralisante. Talvez seja mesmo uma doença, mas é uma doença que não podemos nos dar o luxo de ter.
– Então toma esses remédios e cuida dela!
– Eu vou ficar legal, Luan – diz Ana, acariciando meu rosto. – Mas você também precisa tomar cuidado. Você é tão rápido e corajoso. Vai que você vence.
Não tenho como vencer. Anq deve saber disso bem no fundo do coração. A competição supera minhas habilidades. Garotos de distritos mais ricos, onde a vitória é uma honra descomunal, que treinaram a vida inteira para esse momento. Garotos que são duas ou três vezes maiores do que eu. Garotas que sabem mais de vinte maneiras de te matar com uma faca. Ah, mas também vai ter gente como eu. Gente que vai ser logo eliminada do jogo antes que a verdadeira diversão comece.
– Vai que – repito, porque será difícil convencer minha mãe a seguir em frente se eu mesmo já estou sem esperanças. Além disso, não é da minha natureza cair sem lutar, mesmo quando as coisas parecem insuperáveis. – Aí nós ficaríamos tão ricos quanto Carlinhos.
– Não me importo se vamos ficar ricos. Tudo o que quero é que você volte pra casa. Você vai tentar, não vai? Tentar mesmo, mesmo, mesmo? – pergunta Ana.
– Mesmo, mesmo, mesmo. Eu juro que vou tentar – confirmo. E sei que terei que tentar. Por causa de Ana.
Então, o Pacificador está na porta, assinalando que nosso tempo acabou, e nós três nos abraçamos com tanta força que chega a doer.
– Eu amo vocês. Eu amo vocês duas. – É tudo que digo. Elas dizem a mesma coisa, e então o Pacificador manda elas saírem e a porta se fecha. Enterro minha cabeça em um dos travesseiros de veludo, como se isso pudesse bloquear tudo o que havia se passado.
Alguém entra na sala, e quando levanto os olhos, fico surpresa de ver que é o padeiro, o pai de Caio Iris. Não posso acreditar que ele tenha vindo me visitar. Afinal, logo, logo estarei empenhado em matar seu filho. Mas nós dois nos conhecemos um pouco, e ele conhece Ana ainda mais. Quando ela vende seus queijos de cabra no Prego, separa duas unidades para ele e ele dá a ela uma quantidade bem generosa de pão em troca. Nós sempre esperamos a bruxa da mulher dele se afastar para fazer negócio porque ele é bem mais simpático. Tenho certeza de que ele jamais bateria em seu filho da maneira que ela fez na ocasião do pão queimado. Mas por que será que veio me ver?
O padeiro se senta desajeitadamente na beirada de uma das cadeiras elegantes. Ele é um homem grande, de ombros largos e com cicatrizes de queimaduras devido a todos os anos em que trabalhou nos fornos. Ele deve ter acabado de se despedir do filho.
Ele puxa um pacote de papel branco do bolso da jaqueta e me entrega. Eu o abro e encontro biscoitos. Isso é um luxo que nós jamais podemos desfrutar.
– Obrigado – digo. O padeiro já não é de falar muito em circunstâncias agradáveis. Hoje, ele simplesmente não tem palavras. – Comi um pouco do seu pão hoje de manhã. Meu amigo Gustavo te deu um esquilo em troca. – Ele balança a cabeça em concordância, como se estivesse se lembrando do esquilo. – Não foi sua melhor troca. – Ele dá de ombros, como se isso não tivesse a menor importância.
Então, não consigo pensar em mais nada e nós ficamos sentados em silêncio até que um Pacificador o convoca a se retirar. Ele se levanta e tosse para limpar a garganta.
– Vou ficar de olho na menininha. Pra ter certeza de que ela está comendo direitinho.
Sinto um pouco de alívio em meu peito com as palavras dele. As pessoas se relacionam comigo, mas elas têm afeição mesmo é por Ana. Talvez haja afeição suficiente para mantê-la viva.
Minha visita seguinte também é inesperada. Belle caminha diretamente na minha direção. Ela não está chorosa ou evasiva. Ao contrário, sinto uma urgência em seu tom de voz que me surpreende.
– Eles permitem que você use na arena alguma coisa de seu distrito. Uma lembrança de sua casa. Você poderia usar isso? – Ela está segurando o broche de ouro circular que estava em seu vestido horas atrás. Eu não tinha prestado muita atenção nele antes, mas agora estou vendo que é um pequeno pássaro voando.
– Seu broche? – pergunto. Usar um símbolo de meu distrito é a última coisa que passaria pela minha cabeça em um momento como esse.
– Aqui está. Vou colocá-lo em sua blusa, certo? – Belle não espera a resposta, apenas se inclina e prende o pássaro em minha blusa. – Luan, você me promete que vai usá-lo na arena? – pergunta ela. – Promete?
– Prometo – respondo. Biscoitos. Um broche. Estou ganhando todos os tipos de presente hoje. Belle me dá mais outro. Um beijo no rosto. Depois ela vai embora e fico pensando que talvez Belle realmente tivesse sido minha amiga esse tempo todo.
Por fim, Gustavo está aqui. Talvez não haja nada romântico entre nós, mas, quando abre os braços, não hesito nem um pouco em abraçá-lo. Seu corpo me é bem familiar, a maneira como ele se move, o cheiro de fumaça de madeira. Até mesmo as batidas de seu coração eu consigo reconhecer devido aos momentos em que somos obrigados a ficar no mais absoluto silêncio durante as caçadas. Mas essa é a primeira vez que realmente o sinto, esguio e musculoso, junto ao meu corpo.
– Ouça – diz ele. – Arrumar uma faca deve ser bem fácil, mas você precisa arranjar um arco. Essa é sua melhor opção.
– Nem sempre eles disponibilizam arcos – digo, pensando no ano em que os tributos só tinham disponíveis clavas com pregos nas pontas para golpear uns aos outros até a morte.
– Então, faça um você mesma – insiste Gustavo. – Até um arco não muito bom é melhor do que arco nenhum.
Já havia tentado copiar os arcos de meu pai e os resultados foram desanimadores. A coisa não é assim tão simples. Até ele precisava jogar fora seu próprio trabalho às vezes.
– Nem sei se haverá árvores no local – retruco. Num outro ano eles jogaram todo mundo num descampado com nada além de pedras, areia e arbustos ásperos. Eu, particularmente, odiei aquele ano. Muitos competidores foram picados por cobras venenosas e enlouqueceram de sede.
– Quase sempre há árvores – diz Gustavo. – Desde aquele ano em que metade das pessoas morreram de frio. Não foi nem um pouco divertido.
É verdade. Nós passamos uma edição dos Jogos Vorazes assistindo aos competidores morrerem de frio à noite. Você mal conseguia enxergá-los porque eles ficavam todos encolhidos e não tinham lenha pra fogueira ou tochas ou nada desse tipo. Todas aquelas mortes tranquilas e sem luta foram consideradas muito pouco atraentes na Capital. Desde aquele ano, sempre tem madeira para fazer fogueiras.
– É, normalmente tem algumas – concordo.
– Luan, a coisa não passa de uma caçada. Você é o melhor caçador que conheço.
– Não é só uma caçada. Eles estão armados. Eles usam a cabeça.
– Assim como você. E você tem mais experiência. Experiência real. Você sabe como matar.
– Não pessoas.
– E que diferença pode ter? – indaga Gustavo, de modo sinistro.
A parte mais horrorosa é que se eu puder esquecer que se trata de pessoas, não vai fazer a menor diferença.
Os Pacificadores voltam cedo demais e Gustavo pede um pouco mais de tempo, mas eles o levam embora e começo a entrar em pânico.
– Não deixe que elas morram de fome! – grito, agarrando a mão dele.
– Não vou deixar! Você sabe que eu não vou deixar! Luan, lembre que eu... – Eles nos separam e batem a porta, e jamais saberei do que ele queria que eu me lembrasse.
É uma caminhada curta do Edifício da Justiça até a estação de trem. Nunca estive em um carro. Raramente andei de carroça. Na Costura, nós só andamos a pé.
Eu estava certa em não chorar. A estação está infestada de repórteres com suas câmeras, que mais parecem insetos, apontadas diretamente para meu rosto. Mas tenho muita experiência em retirar os traços de emoção do rosto. E estou fazendo isso agora. Olho de relance para minha aparência numa tela de televisão que está transmitindo minha chegada ao vivo e me sinto gratificada por parecer quase entediada.
Caio Iris, por outro lado, esteve obviamente chorando e, o que é bastante interessante, parece não estar tentando esconder o fato. Imediatamente imagino se essa será a estratégia dele nos Jogos desse ano. Parecer fraco e assustado para dar a impressão aos outros tributos de que ele não está competindo com ninguém, e depois mostrar a que veio. Isso funcionou muito bem para uma garota do Distrito 7, Mayara Maia, alguns anos atrás. Ela parecia uma chorona tão covarde e boba que ninguém se importou com ela até que só restavam poucos competidores. Na verdade, ela matava sem remorso. Muito esperto o desempenho dela. Mas parece uma estratégia estranha para Caio Iris, porque ele é filho de padeiro. Todos esses anos com comida farta e manejando bandejas de pão para cima e para baixo fizeram dele um garoto de ombros largos e bem forte. Será preciso muita choradeira para convencer todo mundo a não prestar atenção nele.
Nós temos de ficar de pé por alguns minutos na entrada do trem enquanto as câmeras devoram nossas imagens. Nosso embarque é permitido e as portas se fecham implacavelmente atrás de nós. O trem começa a se mover em questão de segundos.
A velocidade a princípio me tira o fôlego. É claro que jamais estive em um trem, pois viajar entre um distrito e outro é proibido, exceto para tarefas oficialmente sancionadas. Para nós, isso quase sempre significa transportar carvão. Mas esse não é um trem para o simples transporte de carvão. É um daqueles modelos de alta velocidade da Capital, que atingem quase quatrocentos quilômetros por hora. Nossa viagem até lá vai durar menos de um dia.
Na escola, aprendemos que a Capital foi construída em um local que antes era conhecido como nordeste. E o distrito 12 é o distrito mais longe da capital. Há centenas de anos já se retirava carvão daqui. E é por isso que nossos mineiros precisam escavar tão fundo.
De algum modo, quase tudo na escola acaba se relacionando com carvão. Além de leitura básica e matemática, grande parte de nosso ensino remete ao carvão – exceto a palestra semanal sobre a história de Panem. E não passa de conversa mole sobre o que devemos à Capital. Sei que deve haver muito mais coisas do que nos é ensinado. Deve haver algum relato real do que aconteceu durante a rebelião. Mas não passo muito tempo pensando nisso. Seja lá qual for a verdade, não vejo como ela me ajudará a colocar comida na mesa.
O trem dos tributos é mais chique até do que a sala do Edifício de Justiça. Cada um de nós recebe um aposento pessoal que contém um quarto, um vestíbulo e um banheiro privado com água corrente quente e fria. Nós não temos água quente em casa, a não ser que a gente ferva.
Há gavetas com as mais belas roupas, e Lucas Guimarães diz que posso fazer o que quiser, que tudo está à minha disposição. Só preciso estar pronto para a ceia daqui a uma hora. Removo a blusa azul de meu pai e tomo uma chuveirada quente. Nunca tomei banho de chuveiro antes. É como estar numa chuva de verão, só que quente. Visto uma camisa e uma calça verde-escuras.
No último instante, eu me lembro do broche dourado de Belle. Pela primeira vez, dou uma boa olhada nele. Parece até que alguém confeccionou um pequeno pássaro dourado e depois prendeu um anel em volta dele. O pássaro está preso ao anel somente pelas pontas das asas. De repente, eu o identifico: um tordo.
Esses pássaros são engraçados e a ideia funciona como um tapa na cara da Capital. Durante a rebelião, a Capital criou animais geneticamente modificados para serem usados como armas. O termo usual para eles era bestantes, que às vezes era substituído por bestas, simplesmente. Um deles era um pássaro especial, conhecido como gaio tagarela, que tinha a habilidade de memorizar e repetir conversas humanas em sua totalidade. Eram pássaros que retornavam ao lar, exclusivamente machos, e que eram lançados nas regiões em que se sabia que os inimigos da Capital estavam escondidos. Depois que os pássaros juntavam as palavras, eles voavam de volta aos centros para que o conteúdo fosse gravado. Demorou um tempo até que as pessoas se dessem conta do que estava acontecendo nos distritos, de como conversas particulares estavam sendo transmitidas. Aí, é claro, os rebeldes começaram a fornecer à Capital as mais diversas mentiras, e essa era a piada. Então, os centros foram fechados e os pássaros foram abandonados na natureza para morrer.
Só que eles não morreram. Ao contrário, os gaios tagarelas cruzaram com fêmeas de tordos, criando uma nova espécie que podia reproduzir não só os cantos dos pássaros como também as melodias humanas. Eles haviam perdido a habilidade de enunciar palavras, mas ainda conseguiam imitar os timbres vocais dos humanos, do trinado agudo de uma criança aos tons mais graves de um homem adulto. E podiam recriar canções. Não apenas algumas notas, mas canções inteiras com múltiplos versos, se você tivesse paciência para cantar para eles e se eles gostassem da sua voz.
Meu pai tinha um carinho especial pelos tordos. Quando íamos caçar, ele assobiava ou cantava canções complicadas para eles que, depois de uma pausa educada, sempre cantavam de volta. Nem todo mundo é tratado com a mesma consideração. Mas sempre que meu pai cantava, todos os pássaros na área ficavam em silêncio e ouviam. A voz dele era tão bonita, alta e clara, e tão cheia de vida que fazia você sentir vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Jamais consegui reproduzir aquele prodígio depois que ele se foi. Ainda assim, há algo de reconfortante em relação a esse pequeno pássaro. É como ter um pedacinho de meu pai comigo, me protegendo. Aperto o broche na camisa e, com o tecido verde-escuro como pano de fundo, sou quase capaz de imaginar o tordo voando pelas árvores.
Lucas Guimarães aparece para me levar à ceia. Eu o sigo ao longo de um corredor estreito até uma sala de jantar com refinadas paredes revestidas de madeira. Há uma mesa onde todos os pratos são altamente quebráveis. Caio Iris está sentado à nossa espera, a cadeira perto da dele está vazia.
– Onde está Carlinhos? – pergunta Lucas Guimarães, reluzente.
– A última vez que o vi, ele estava indo tirar um cochilo – diz Caio.
– Bem, o dia foi exaustivo – diz Lucas Guimarães. Acho que ele está aliviado pela ausência de Carlinhos. Quem poderia culpá-lo?
A ceia chega em diferentes estágios. Uma encorpada sopa de cenoura seguida de salada verde e depois costeleta de cordeiro e purê de batata, queijo e frutas. Para encerrar, bolo de chocolate. Ao longo da refeição, Lucas Guimarães não para de nos lembrar que devemos reservar espaço porque ainda vem mais. Mas já estou empanturrado porque nunca comi uma comida tão boa e em tanta quantidade, e porque provavelmente a melhor coisa que posso fazer até que comecem os Jogos é ganhar um pouco de peso.
– Pelo menos vocês dois têm bons modos – diz Lucas Guimarães assim que terminamos o prato principal. – O par do ano passado comeu tudo com as mãos, como uma dupla de selvagens. Perturbou completamente minha digestão.
O par do ano passado eram dois adolescentes da Costura que jamais, em nenhum dia de suas vidas, tiveram comida suficiente em suas mesas. E quando tiveram comida, a etiqueta certamente foi a última coisa em que pensaram. Caio é filho de padeiro. Minha mãe ensinou a mim e a Ana como comer com educação, o que significa que consigo, sim, manusear um garfo e uma faca. Mas odeio tanto o comentário de Lucas Guimarães que decido comer o restante de minha comida com os dedos. Depois limpo as mãos na toalha de mesa. Isso faz com que os lábios dele fiquem franzidos de irritação.
Agora que a refeição terminou, estou lutando para manter a comida no estômago. Vejo que Caio também está com a aparência um pouco esverdeada. Nenhum dos dois está acostumado a banquetes desse tipo. Mas se posso aguentar a mistura de carne moída, entranhas de porco e cascas de árvores que Greasy Sae prepara – uma especialidade do inverno –, não há motivos para não suportar tudo isso aqui.
Vamos para outro compartimento assistir à reprise das colheitas em toda Panem. Eles tentam escaloná-las ao longo do dia de modo que todos possam assistir a tudo ao vivo, mas só os residentes da Capital conseguem fazer isso já que eles não são obrigados a participar das colheitas.
Uma após a outra, vemos as outras colheitas, os nomes sendo chamados, os voluntários se apresentando ou, o que é mais comum, não se apresentando. Nós examinamos o rosto dos garotos que competirão conosco. Alguns se destacam em minha mente. Um garoto monstruoso que se apresenta como voluntário do Distrito 2. Uma garota ruiva de cabelos lisos e cara de raposa do Distrito 5. Um garoto com um problema no pé do Distrito 10. E, o que mais me assustou, uma garota de doze anos do Distrito 11. Ela tem a pele e os olhos escuros, mas fora isso, é bem parecida com Ana no tamanho e no jeito. Quando ela sobe ao palco e perguntam se há algum voluntário, tudo o que se consegue ouvir é o vento soprando nos edifícios decrépitos em torno dela. Não há ninguém disposto a tomar seu lugar.
Por último, aparece o Distrito 12. Todos podem ver o desespero em minha voz quando empurro minha irmã para trás de mim, como se eu estivesse com medo de ninguém me escutar e Ana ser levada de qualquer jeito. Mas é claro que eles escutam. Vejo Gustavo puxando-a de mim e me vejo subindo ao palco. Os comentaristas não têm muita certeza do que dizer sobre a recusa da multidão em aplaudir. A saudação silenciosa. Um diz que o Distrito 12 sempre foi um pouco atrasado, mas os costumes locais são até que charmosos de vez em quando. Como se houvesse ensaiado, Carlinhos desaba do palco, e eles resmungam de maneira cômica. O nome de Caio é anunciado e ele toma seu lugar lentamente. Nós apertamos as mãos. Eles cortam para o hino mais uma vez e o programa acaba.
Lucas Guimarães está desconcertado com o estado de sua peruca no evento.
– Seu mentor tem muito o que aprender sobre apresentações e sobre como se portar diante das câmeras de televisão.
Caio solta um riso inesperado.
– Ele estava bêbado – comenta. – Todo ano ele está bêbado.
– Todo dia – acrescento. Não posso evitar um sorriso sarcástico. Lucas Guimarães faz parecer que Carlinhos tem um comportamento rude que poderia ser corrigido com algumas dicas da parte dele.
– Pois é – sibila Lucas Guimarães. – É estranho que vocês dois achem isso engraçado. Sabem que o mentor de vocês é seu salva-vidas nesses Jogos. A pessoa que vai aconselhar vocês, elencar os patrocinadores e comandar o envio de quaisquer dádivas. Carlinhos pode muito bem ser a diferença entre a vida e a morte de vocês dois!
Só então Carlinhos entra cambaleando no compartimento.
– Perdi a ceia? – pergunta ele, com uma voz arrastada. Então vomita sobre o caro carpete e cai por cima da sujeira.
– Podem rir! – diz Lucas Guimarães. Ele contorna a poça de vômito com seus sapatos com salto e sai do recinto.

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